Raça e Gênero nas Raízes Históricas do Emprego Doméstico no Brasil

AutorCristina Pereira Vieceli, Julia Giles Wünsch e Mariana Willmersdorf Steffen
Páginas43-58

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Introdução

O emprego doméstico é uma ocupação historicamente relegada a mulheres de classes e raças pior situadas no espectro social. As relações de gênero e raça presentes no emprego doméstico no Brasil, bem como na América Latina em geral, possuem raízes em sua formação econômica e social a partir da expansão colonial conduzida pelos países ibéricos com base na força de trabalho escrava de povos indígenas e de negros africanos. Este processo levou à constituição de sociedades marcadas por elevados níveis de desigualdade social e de segregação racial, que mantiveram marginalizadas as populações dominadas e escravizadas.

Uma análise sobre a formação do emprego doméstico no Brasil deve, portanto, considerar estes aspectos centrais de sua história, ambientando-a no quadro mais amplo da estruturação do trabalho doméstico na América Latina. Assim, neste capítulo, tratamos inicialmente da constituição da força de trabalho doméstica nos países latino-americanos a partir da perspectiva de colonialidade e divisão da sociedade em raças. Mantida essa mesma perspectiva, enfocamos com mais detalhes o caso brasileiro a partir da literatura especializada. Analisamos, assim, as relações de trabalho após a abolição, tratando especialmente da inserção marginal da população negra liberta e da centralidade da mulher negra na força de trabalho doméstica brasileira, sem deixar de oferecer um destaque crítico à abordagem da democracia racial.

Colonialidade do poder e a construção dos marcadores de raça e classe na estruturação do trabalho doméstico na América Latina

A interação entre classe, raça e gênero, geradora das desigualdades que persistem e se reproduzem como marcas características do emprego doméstico no Brasil, tem suas raízes nos processos históricos de colonização do continente latino-americano (BERNARDINO--COSTA, 2015). O caso brasileiro, não obstante as particularidades dos processos sociais que caracterizam sua trajetória, compartilha vários traços comuns à lógica colonial própria do continente latino-americano quanto à necessidade de legitimação das relações de dominação e às imposições decorrentes da expansão do capitalismo em um mercado mundial. A América

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Latina foi cenário de um projeto de poder colonial cujos efeitos repercutem na estrutura do trabalho doméstico remunerado ainda hoje (QUIJANO, 2005). Há, por conseguinte, que se identiicarem os processos subjacentes a esta origem comum e como estes se traduziram em realidades persistentes.

O quadro de segregação, racialização1 e desigualdade que caracteriza o continente latino-americano pode ser compreendido com base no conceito de colonialidade do poder, cunhado por Aníbal Quijano (2005). Segundo o autor, o colonialismo foi possível em face da convergência e associação de dois processos históricos. O primeiro processo é a difusão da ideia de que diferenças de ordem biológica explicam a posição de inferioridade dos dominados frente aos dominantes. Este principal elemento da lógica da conquista está na fundação das relações de dominação que ixaram e deram continuidade ao colonialismo, caracterizando um novo padrão de poder que se dilatou por toda a América Latina e, mais tarde, para o mundo. O segundo processo refere-se, sobretudo, às formas de controle do trabalho sobre as quais se estruturou a expansão do capitalismo e do mercado mundial.

A concepção sociológica de raça como a conhecemos e empregamos hoje nasce associada ao processo de colonização da América, tendo servido de instrumento de subjugação de povos nativos e africanos. Assim, associou-se a conquistadores e conquistados, respectivamente, a qualiicação de superioridade e inferioridade de raça. As relações sociais típicas da colonização assentam-se sobre esta ideia, que produz identidades intrinsecamente vinculadas a hierarquias, lugares e papéis correspondentes a um padrão de dominação. Desta forma, formam-se as identidades de negro, índio e mestiço, as quais partilham certos papéis sociais e uma posição de inferioridade na nascente relação, enquanto as identidades existentes de espanhol e português passam por uma ressigniicação a im de representarem mais do que simples procedência geográica. Foi-lhes, com efeito, conferida também uma conotação racial, relativamente às novas identidades, de modo que os europeus emergem como modelo de organização social e base comparativa civilizada para o resto do mundo (COSTA, 2004). Como sintetiza Quijano (2005, p. 17), "raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classiicação social básica da população".

A colonização europeia da América Latina utilizou-se, portanto, do ideal racial, ixando uma dicotomia entre a cultura dos países europeus, considerada superior e portadora da modernidade, e a cultura dos povos colonizados vista como atrasada. Muito embora as civilizações pré-colombianas, a exemplo da Maia, da Asteca e da Inca, fossem bastante avançadas em termos tecnológicos - o que se evidencia em grandes construções como Machu Pichu e sistemas soisticados de transporte e irrigação -, predominou a ideologia segundo a qual estas sociedades eram menos racionais e ligadas ao misticismo. Evoluiu-se, ademais, para a redução dos múltiplos povos latino-americanos - astecas, maias, chimus, aimarás, chibatas etc. - a um denominador comum sob o rótulo de "índios". Um processo semelhante ocorreria também com a população expropriada do continente africano e forçada a trabalhar na condição de escravos em território distante. Diferentes culturas, como achantes, iorubas, zulus, congos, bacongos etc, sujeitaram-se à circunstância geral de "negros" (QUIJANO, 2005). A noção

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de que os povos conquistados e escravizados fossem culturalmente inferiores serviu como pretexto para a exploração de seu trabalho até a morte, levando ao genocídio de milhares de indígenas e negros, bem como ao desaparecimento de civilizações.

A escravidão e a segregação racial baseiam-se tanto na dualidade cultural quanto na divisão entre razão/sujeito e corpo de Descartes. De acordo com a ideia do pensador francês, existiria uma divisão entre razão/sujeito e corpo, na qual a razão/sujeito, além de representar a ideia da alma (proveniente da teologia cristã), também é entendida como a única fonte de saber racional, sendo o corpo tão somente objeto. A este fenômeno, Mignolo (2006) acrescenta ainda o processo de colonização da memória, que corresponde a uma divisão corpóreo-geopolítica do conhecimento, sendo a produção de conhecimento própria de determinadas regiões do globo - não surpreendentemente, as regiões de origem dos conquistadores. Em consequência, irma-se a noção de que o corpo colonizado e incapaz de gerar conhecimento destina-se aos trabalhos predominantemente braçais.

Foi a partir desta concepção de raça - nada mais do que uma construção social (WADE, 1997) concebida com o im de hierarquizar sociedades e populações humanas (GUIMARÃES, 2003) - que os colonizadores asseguraram legitimidade às relações de dominação no processo de expansão ibérica, especialmente quanto à escravidão. Como observa Costa (2004), apesar de ter origens em comum com a biologia, na medida em que abordava grupos com traços físicos comuns entre si e distintos dos de outro grupo, o conceito de raça adquiriu conotação política e social bastante distante do conceito de raça para as ciências biológicas. Em especial, a associação entre características físicas e atributos morais tornou o conceito de raça decisivo na constituição do indivíduo, transformando-o em marcador social. Em sua origem, no mundo colonial, resultou na naturalização de posições e práticas de inferioridade (dominados não europeus) e superioridade (dominantes europeus).

As formas de controle e exploração do trabalho no sistema colonial, articuladas em torno da expansão capitalista e do mercado mundial, eram histórica e sociologicamente novas. Para preencher novas funções, cada uma destas formas desenvolveu certos traços e conigurações histórico-estruturais (QUIJANO, 2005). Para tanto, estabeleceram-se correspondências entre as novas identidades produzidas ao amparo da ideia de raça e os papéis e lugares do novo padrão global de controle do trabalho, resultando numa sistemática divisão racial do trabalho. Cada forma de trabalho foi associada a uma raça em particular e o controle do trabalho passou a ser um controle de grupos populacionais especíicos. Esta lógica de dominação/exploração, que naturalizou a relação entre raça e trabalho, foi bem-sucedida e logra reproduzir-se até os dias de hoje (QUIJANO, 2005, p. 119).

Este mecanismo de dominação assentado na raça combinou-se a outro mecanismo, universal e ainda mais antigo, que é a dominação de gênero. Ambos ixaram os critérios fundamentais de distribuição da população mundial em consonância à estrutura de poder da sociedade moderna. Como aponta Bernardino-Costa (2015), raça e gênero apoiaram a construção de uma divisão racial e sexual do trabalho que persiste até o presente. Tal divisão relete-se, de modo transparente, na estruturação do trabalho doméstico na América Latina. Se as mulheres já eram consideradas menos racionais, há, em relação às negras e indígenas, um duplo caráter em que o elemento raça se associa ao gênero, reforçando a crença de que

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se encontram mais próximas da natureza e devem ser relegadas a formas mais precárias de serviços e à exploração sexual. Segundo Quijano (2005, p.118):

Esse novo e radical dualismo não afetou somente as relações raciais de dominação, mas também a mais antiga, as relações sexuais de dominação. Daí em diante, o lugar das mulheres, muito em especial o das mulheres...

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