Racionalidade jurídica e racionalidade econômica: Entre o Monte e o Rio

AutorKleber Luiz Zanchim
Páginas56-65

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"A capacidade cognitiva superior é aquilo que torna a vida do homem mais cheia de sofrimento do que a vida do animar' (Arthur Schopenhauer, Da Morte, da Metafísica do Amor, do Sofrimento do Mundo, São Paulo, Martin Claret, trad. port, de Pietro Nasseti, 2002, p. 119).

Introdução

Monte e rio são dois vocábulos que conotam muito mais do que a ideia de uma estrutura rochosa e de um curso aquífero. Representam uma oposição crítica entre terra e água, estática e dinâmica, obstáculo e saída e, pasme-se, Direito e Economia. O primeiro assume muitas vezes a veste de fator gerador de custos ao mercado por não contemplar em suas normas o que se chama de racionalidade dos agentes económicos.1 A última costuma ser considerada como pretensiosa ordem natural da experiência humana, que, diante da escassez dos recursos disponíveis e da multiplicação das necessidades do homem, busca a aplicação eficiente desses recursos para que uma organização social seja viável.2

Assim, enquanto o "rio" Economia flui para a satisfação das necessidades huma-nas considerando fórmulas de "alocação de recursos", o "monte" Direito põe-se diante dela como um "divisor de águas" que pode alterar-lhe o curso e favorecer ou prejudicar seu desembocar no "mar da eficiência". Em meio a essas "forças da natureza" está a sociedade, à espera de solução para suas mazelas e conflitos. A situação é semelhante à descrita pelo poeta Pablo Neruda que, diante de um povo abandonado entre um monte e um rio, é chamado a prestar auxílio na luta contra as dificuldades criadas por esse ambiente sem saídas:

"Teu povo, teu povo abandonado entre o monte e o rio, com dores e com fome, não quer lutar sozinho, te está esperando, amigo".3

Diz-se que o "amigo" que pretender lutar contra as hostilidades decorrentes da

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zona de isolamento recíproco entre Direito e da Economia deve, como primeiro passo, pesquisar um elemento considerado essencial para a divergência entre essas duas ciências: suas racionalidades. A partir destas, as dores e a fome dos isolados (sociedade) poderiam ser minoradas se se conseguisse que as pedras da rocha cristalina formassem uma ponte sobre as águas, ou que o curso destas fosse alterado em direção à rocha para abri-lhe saídas. O desafio é saber se tais opções são possíveis, e como se poderia decidir entre elas.

A (ir)racionalidade como regra e o poder ordenador

Falar aqui de racionalidade é quase leviano. Não só porque os limites do presente estudo são estreitos demais para a amplitude do conceito, mas porque, ao que parece, a própria razão humana não o comporta. Dizemos "quase leviano" porque, apesar das inúmeras tentativas frustradas de precisar o que seja racionalidade, existem pessoas que continuam tentando, de modo que a imprudência deste trabalho é compartilhada com a delas.

Como ponto de partida vamos admitir que racionalidade é a razão em ação ou em exercício. Com isso não resolvemos qualquer problema conceituai, mas ao menos consideramos que a racionalidade tem natureza operativa não restrita a associações puramente mentais, já que envolve a tomada de decisões. Essas decisões, como veremos, referem-se aos meios para o alcance de determinados fins. Antes de explorarmos esse ponto, porém, é preciso definir os caminhos de análise da razão/raciona-lidade.

Analisar a racionalidade é tão difícil quanto analisar o homem. Na verdade, muitos poderão dizer que esses conceitos são a mesma coisa, pois o racional seria o ponto de definição do homem. Se assim for, seria impossível ao homem definir a razão porque, sendo um e outra, em essência, a mesma coisa, não haveria a diferenciação necessária para qualquer definição. Por isso, para que a discussão faça sentido é preciso que se considere a razão/racionali-dade não como um substantivo equivalente ao substantivo homem, mas como um adjetivo ou atributo dele. Assim procedeu Cícero, que concebeu a razão como uma qualidade positiva do ser humano: "Grande vantagem deu a natureza e a razão ao homem sobre todos os seres animados, concedendo-lhe o significado da ordem, da bem-aventurança e a medida nas suas ações e palavras. Só ele sente a beleza, a graciosidade, a proporção dos objetos sujeitos à sua vista; e o homem, conduzindo essa imagem dos objetos materiais ao que só interessa ao espírito, transforma em beleza, assiduidade e ordem seus desejos e suas ações, resguarda-se da desonestidade e da covardia, preserva-se da paixão tanto para seus sentimentos como para seu comportamento".4

Cícero vê a razão como um mecanismo de controle das impressões humanas, apto a torná-las sublimes. O racional seria o belo, o adequado, o farol a iluminar as virtudes, na medida em que controla as "más" tendências do homem. Friedrich Nietzsche, todavia, pensa diferente. Para este filósofo, o homem persegue um obje-tivo pessoal, que ele mesmo mede segundo a sua razão individual, e não segundo uma razão geral abstrata. Tal objetivo seria o prazer: "o indivíduo quer para si o prazer ou quer afastar o desprazer; a questão é sempre, em qualquer sentido, a autocon-servação. Sócrates e Platão estão certos: o que quer que o homem faça, ele sempre faz o bem, isto é: o que lhe parece bom (útil) segundo o grau de seu intelecto, segundo a eventual medida de sua racionalidade".5

Se deduzirmos dos trechos transcritos os conteúdos de racionalidade que informam, temos que para Cícero seria irracional que o homem deixasse de resguardar

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sua honestidade e coragem e de controlar suas paixões. Para Nietzsche, irracional seria não buscar o prazer. Esses conteúdos decorrem de um juízo orientado finalis-ticamente, como explicitado a seguir.

Comecemos estudando o que os fins representam para os indivíduos. Isso importa porque, se se prestar atenção, os filósofos definem a razão pelos fins: certo comportamento é considerado racional porque se liga a determinados fins. Cícero encontra a razão no controle, enquanto Nietzsche a encontra no prazer. E o que são "controle" e "prazer"? São objetos de valor. Vejamos.

Valores são, como ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr., "símbolos de preferência para ações indeterminadamente permanentes, ou ainda, fórmulas integradoras e sintéticas para a representação do sentido de consenso social".6 Sendo símbolos de preferência, os valores envolvem um juízo de preferibilidade sobre algo. Ora, é intuitivo que preferimos uma coisa a outra quando uma satisfaz melhor nossas necessidades que a outra. Daí Johannes Hessen considerar que tem valor "tudo aquilo que for apropriado a satisfazer determinadas necessidades".7

A estrutura axiológica é composta, portanto, por um sujeito que valora,8 um objeto valorado e uma necessidade a que esse objeto atende: é exatamente aí que se assenta o seu valor. Para Cícero, tem valor o autocontrole, porque satisfaz uma necessidade que ele julga fundamental, qual seja, a preservação da sociedade: "É também recorrendo à razão que a natureza aproxima o homem do homem, fazendo-o dialogar e viver em comum. Inspirandp-lhe especial ternura pelos filhos, fazendo-o de-seja reuniões e conservar a sociedade entre si: por esses motivos ela os entusiasma a procurar todo o necessário para a conservação e comodidades da vida, hão somente para si mesmos, como para a sua mulher, seus filhos e todos aqueles que eles amam e devem proteger".9

Para Nietzsche, de outro lado, tem valor o prazer, que satisfaz a necessidade da autoconservação: "na medida em que há um prazer na ação (sentimento do próprio poder, da intensidade da própria excitação), a ação ocorre para conservar o bem-estar do indivíduo, sob um ponto de vista similar ao da legítima defesa, ao da mentira por necessidade. Sem prazer não há vida: a luta pelo prazer é a luta pela vida".10

Portanto, Cícero considera uma necessidade de preservação social e enxerga no autocontrole dos indivíduos uma forma de satisfazê-la. Por isso, valora o autocontrole como comportamento racional. Já Nietzsche vê uma necessidade de preservação pessoal e identifica na busca pelo prazer um modo de atendê-la. Logo, valora essa busca como um agir racional. Controle e prazer são, assim, objetos'de valor.

Segundo essas premissas podemos analisar a racionalidade como um sistema, aqui entendido como um organismo composto de repertório (elementos) e estrutura (regras de interação entre esses elementos).11 Os elementos são as necessidades (fins) e as condutas (meios), enquanto a regra de interação é um juízo de valor. Fixado o fim (elemento fire-definido), o sujeito observa os meios disponíveis e, na valoração de um destes como adequado (elemento /rás-definido), exercita sua racionalidade, põe sua razão em ato, decide. O sistema da racionalidade é, portanto, um sistema de decisão (pragmático).

Ocorre que as necessidades dos indivíduos são muito variadas, o que faz varia-

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dos também os meios de satisfazê-las. A conduta que se adota para, por exemplo, satisfazer uma necessidade de convivência, que depende de mecanismos de aproximação entre pessoas, não é a que se utiliza para atender a uma necessidade de isolamento, que depende da não-aproximação. A diferença de fins determina a diferença de meios, e nenhum desses elementos é permutável. Ou seja, não é possível, sob pena de o...

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