Racismo: criminalizacao e genocidio da populacao negra. Quando vamos comecar a respirar?/Racism: criminalization and black population genocide. When are we going to start breathing?

AutorXavier, Lucia
CargoREVISTA EM PAUTA

Introducao

A crise global de 2008 fez crescer em todas as partes do mundo movimentos conservadores baseados na supremacia branca contra os direitos humanos e contra a interferencia dos Estados como regulador das relacoes sociais. Esses movimentos, atrelados a uma perspectiva ultraliberal, promovem mudancas globais igualmente conservadoras, varrendo de todas as partes governos de esquerda, considerados governos do atraso.

Nessa mesma linha, desde 2014, o Brasil vem sofrendo mudancas politicas, economicas e sociais sem precedentes. Afetado pela crise economica global de 2008, soma-se a acao judicial contra a corrupcao na Petrobras, denominada Operacao Lava Jato, que trouxe para o centro das investigacoes membros do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e o ex-presidente Luiz Inacio Lula da Silva, posteriormente preso em 2018. Em 2016, Dilma Rousseff, presidente eleita em 2014, foi afastada do cargo apos sofrer um processo de impeachment. Com a assuncao do vice Michel Temer, vimos cair por terra um longo trabalho de redemocratizacao do pais, desde o fim da ditadura militar.

O governo Temer reduziu e congelou os gastos nas areas sociais (Emenda Constitucional no 95 - chamada pelos opositores de PEC da morte) e empreendeu reformas trabalhistas (Lei 13.467/2017) alterando e flexibilizando os dispositivos da Consolidacao das Leis do Trabalho (CLT). O Governo Temer deixa como heranca, austeridade e um rastro de corrupcao que o levou a prisao em 2019 na Operacao Lava Jato. Um ano depois, o ex-presidente e solto e cumpre medidas cautelares.

A crise acabou gerando um quadro de instabilidade politica, que fez eclodir uma onda conservadora gestada desde 2003, a partir de setores insatisfeitos com a ascensao do Partido dos Trabalhadores ao poder. Esses setores nao estavam interessados somente na mudanca do comando dos poderes, os seus interesses tambem se alargavam para outros processos voltados para a mudanca de paradigma dos direitos, do funcionamento do Estado e da ampliacao do acesso sem barreiras aos bens comuns (agua, terras, florestas etc). Diante do esfacelamento do projeto politico da esquerda, de uma crise economica e financeira, de valores retrogrados e de constantes ataques aos direitos humanos, chega ao poder em 2019 o atual Presidente da Republica, Jair Messias Bolsonaro.

O entao Presidente inicia seu governo com um projeto politico de enxugamento das funcoes do Estado em relacao ao pacto de protecao social baseado em Direitos Humanos. Promove a reforma da previdencia;

O desregulamentacao das terras e territorios de povos indigenas, de comunidades tradicionais - dentre elas as comunidades quilombolas; bem como do fim da protecao da floresta amazonica e de outras areas de protecao ambiental.

O projeto em curso tambem almeja promover reformas em outros ambitos, promovendo o desregulamento de politicas publicas e encerrando os parcos servicos oferecidos. Com uma estrategia de militarizacao dos postos governamentais, como forma de sustentacao politica e de controle, mais de 20 ministerios passam a ter em seu comando militares das forcas armadas; inclusive alargando a participacao dessas forcas em acoes de controle social nos estados. A forte militarizacao tambem vem acompanhada da flexibilizacao da legislacao do uso de armas para civis, promessa de campanha do entao Presidente, com a desculpa de promover a protecao dos cidadaos e cidadas.

Faz parte desse projeto o ataque frontal aos grupos vulnerabilizados como a populacao negra, LGBTI, povos indigenas, mulheres. Os primeiros ataques desses setores dirigidos a populacao negra tiveram inicio ainda na campanha eleitoral e seguiram imediatamente a posse como presidente. O debate sobre a inexistencia do racismo como causa estrutural das desigualdades raciais; as tentativas de desregulamentar direitos da populacao negra, como a politica de cotas nas universidades; o nao reconhecimento dos direitos trabalhistas das trabalhadoras domesticas; a criminalizacao dos negros, sobretudo dos jovens; o tratamento com inferioridade e a veiculacao de imagens simbolicas de negros subordinados como a do deputado Helio Fernando Barbosa Lopes (Helio Bolsonaro), fazem parte do repertorio perverso desses setores. Ainda no intuito de afirmar o desprezo pelo debate sobre a questao racial, o Presidente empossou, recentemente, Sergio Camargo como presidente da Fundacao Cultural Palmares. O orgao foi criado em 1988 e esta voltado para estimular, integrar, preservar, proteger e disseminar as culturas negras; inclusive a de acompanhar o reconhecimento das comunidades quilombolas. Sergio Camargo trata a questao racial como uma falsa questao, nao acredita que existe racismo no pais e chama o movimento negro de "escoria maldita" (1).

As acoes negativas voltadas para a populacao negra so reforcaram a violencia, a morte e a negligencia no enfrentamento as desigualdades raciais. Dados apresentados pelo Monitor da Violencia (2) demonstram que o pais teve 4.146 assassinatos em marco de 2020, sao 417 mortes a mais em comparacao com o mesmo mes de 2019, uma alta de 11% (G1, 2020a).

Em marco de 2020 fomos acordados com a noticia de uma pandemia letal que assolava a Europa, provocada pelo novo Coronavirus (Covid-19). A pandemia, que tem inicio na provincia de Wuhan na Cima, chega ao Brasil atraves dos viajantes de ferias ou a trabalho da Europa, provavelmente da Italia. Em pouco tempo tambem registramos os primeiros casos no pais. Fechamos o mes de maio de 2020 com 499.966 casos do novo Coronavirus (Sars-CoV-2) (3) , com 28.849 mortes.

Com a pandemia, medidas de quarentena e isolamento social sao aplicadas em todas as cidades, especialmente Sao Paulo e Rio de Janeiro, excetuando os servicos essenciais - supermercados e farmacias, transporte e outros. A quarentena obrigatoria, tinha como finalidade impedir o colapso nos servicos de saude de alta complexidade e a imediata construcao de hospitais de campanha que pudessem oferecer tratamento.

As medidas geraram uma imediata suspensao do emprego e desemprego, observa-se a falta de condicoes para o acesso a alimentacao, sobretudo para aqueles que ja viviam em extrema pobreza; o crescimento do adoecimento em diferentes grupos sociais e a falta de condicoes para a prevencao, a exemplo da falta de agua para lavar as maos, medida essencial de prevencao. A crise sanitaria trouxe a tona a necessidade de tomar medidas para a protecao dos mais vulneraveis como idosos, encarcerados, moradores de favelas e periferias e populacao de rua. Promovendo assim um intenso debate em torno da garantia dos direitos humanos essenciais, diante das crises economicas e sociais face a crise sanitaria instalada com a pandemia.

Em menos de um mes, os grupos sociais, ja vulnerabizados pela crise economica e politica, encaram outras crises de ordem sanitaria, social e emocional. Medidas de enfrentamento a crise tem inicio no ambito da sociedade e do legislativo com a campanha da renda minima que acabou instituindo um auxilio emergencial de R$ 600,00 (seiscentos reais), durante tres meses, para aquelas pessoas que nao tinham renda para garantirem as minimas condicoes de vida. O Programa de Auxilio emergencia descortinou um contingente populacional em torno de 46 milhoes de pessoas desprotegidas e invisiveis para o poder publico. Nessa direcao e tambem instituida acoes de redistribuicao de recursos financeiros para os estados e municipios, atraves do que convencionou-se chamar de "economia de guerra". Junto a

essas e outras medidas, o Estado ativou os comandos militares para a seguranca publica.

Na medida que a pandemia avancava, as perdas dos direitos comecaram a tomar forca, numa sociedade com profundas desigualdades e sem nenhuma participacao da Presidencia da Republica na conducao e controle dos problemas sociais amplificados pela pandemia. A descrenca pelo Presidente sobre os efeitos da pandemia na vida brasileira nao era um posicionamento isolado. Como ele, diversos governantes em todas as partes do mundo tambem compreendiam esse impacto como algo forjado contra os seus governos. Poucos voltaram atras como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. E no caso brasileiro, esse processo so inflamou a crise politica entre os poderes instituidos, em especial com o Supremo Tribunal Federal, que tem arbitrado em todas as acoes do Executivo.

Entre os conflitos gerados nos processos de crises, um tema chama a atencao para alem do descaso no trato governamental com as mortes causadas pela pandemia, e a questao racial. As crises politicas, sociais, economicas e sanitarias evidenciaram com tamanha nitidez as desigualdades raciais a ponto de demonstrar que nesse momento a populacao negra e a mais afetada, inclusive com uma forte violencia perpetrada pelo Estado, especialmente pelas policias militares. Nao por coincidencia, o mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde os negros sao igualmente afetados e sofrem profunda violencia do Estado.

A pandemia atingiu inicialmente uma populacao com condicoes muito favoraveis e foi dura mesmo neste grupo de pessoas brancas, ricas e com amplo acesso a saude. Com a ampliacao da contaminacao para outros grupos, verificamos que ao desagregar os casos por raca/cor, mesmo em menor numero, a populacao negra sofreu maior impacto. De 30 mil casos notificados como Sindrome Respiratoria Aguda Grave (SRAG), confirmadas para COVID-19, analisados pelo Nucleo de Operacoes e Inteligencia em Saude (NOIS, 2020), a diferenca na taxa de obitos entre negros (55%) e brancos (38%) e assustadora. (4)

"I Can't Breathe!" ("Nao consigo respirar"). Em 25 de maio de 2020, vimos pelas reportagens transmitidas na televisao e nas redes sociais, a policia de Minneapolis em Minnesota, Estados Unidos, matar por sufocamento George Floyd. A imagem resgatou a memoria a morte de Eric Garner, ocorrida em 2014, nas mesmas condicoes que a de Floyd, que tambem implorou por sua vida avisando que nao conseguia respirar.

George Floyd, que trabalhava como seguranca, foi preso na saida de...

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