O racismo na/da politica proibicionista brasileira: reducao de danos como antidoto antirracista/Brazilian prohibitionist policy's racism: harm reduction as an anti-racist antidote.

AutorSantos Rosa, Lucia Cristina dos

Introdução

O Brasil se constitui historicamente, no cerne dos países capitalistas ocidentais, como uma sociedade periférica. Em meio a uma profunda desigualdade estrutural, condicionada por marcadores de classe, raça e gênero, baseada na colonialidade, tal sociedade delineia "um padrão de poder que articula diversas dimensões da existência social. Trabalho, subjetividade, autoridade, sexualidade, cultura, identidade, [...] dimensões constituintes das experiências sociais de indivíduos e grupos" (SANTOS, 2012, p. 40). Desse modo, essa sociedade se configurou a partir da colonização pelo europeu, homem e branco, sendo uma colônia de exploração, em que a metrópole extraía toda a riqueza local para seu benefício exclusivo. As relações de trabalho que se constroem têm por base o trabalho escravo do indígena e do negro, sequestrado da África.

Neste país, as desigualdades foram naturalizadas pelas elites dominantes, o que influencia como uma marca histórica na construção do éthos do brasileiro e, consequentemente, da esfera pública no país, território onde se forja e se condensa a opinião pública, sobretudo em termos do reconhecimento da alteridade e dos direitos do outro, o que estrutura as relações sociais. Como afirmam Marx e Engels (2001, p. 83), as "ideias dominantes de uma época nunca passaram das ideias das classes dominantes", pois a dominação não ocorre apenas na esfera econômica, nem exclusivamente pela força, mas no plano das ideias, da busca do consenso, materializandose nas ações estatais, embora persistindo no jogo das disputas políticas e sociais.

A Independência do Brasil, em 1822, a Libertação dos Escravos, em 1888, e a instituição da República, em 1889, pouco alteraram o padrão das relações sociais no Brasil, configurando meramente arranjos entre as elites dominantes. Os modelos dominantes se impuseram em todas as esferas na sociedade brasileira contra os interesses dos segmentos dominados (LEAL, 2012). Isso se dá, sobretudo, a partir da associação do binômio repressãoassistencialismo (IAMAMOTO; CARVALHO, 2011), materializado na cultura do favor e da gratidão, permeado pela violência dirigida aos "de baixo", ou seja, aos que foram excluídos das decisões políticas e dos benefícios sociais.

Nesse cenário, o negro liberto, sem política que o integrasse a uma sociedade em acelerado processo de urbanização e industrialização, vai ocupar as áreas de morros, favelas e ruas, resistindo aos processos de intensificação das desigualdades sociais. Por sua vez, os governantes, no afã de acelerar a industrialização, vão implementar uma política de estimulo à migração europeia, que é associada a uma política de embranquecimento da população brasileira, posto que os negros passam a ser responsabilizados pelas mazelas sociais do país (COSTA, 1983). Tal violência simbólica é reforçada pelas ideias de que haveria no Brasil uma "democracia racial" (FREIRE, 1996) que camufla as questões raciais sob o manto de uma relação interétnica harmoniosa e pacífica, posta como subjacente. Além disso, de que haveria uma relação cordata entre brancos e negros no país, o que o movimento negro vem desmistificando.

Nessa perspectiva, as primeiras medidas públicas para responder às manifestações da questão social emergente concatenaram: medidas saneadoras do meio urbano, sintetizadas no higienismo; fomento às ações benemerentes, que associam "ajuda" ao favor, materializado no assistencialismo e institucionalização, na segregação, via internação, no geral forçada, dos segmentos tornados "indesejáveis" socialmente.

Assim, o principal "beneficiário" da ação governamental era a população negra, o que fica evidente nas primeiras ações de combate às "drogas" no país, imbricadamente articuladas à segurança pública. Ademais, possuem marca da regulação via princípios de hierarquização social, por meio da concentração de ação em áreas duras, "aquelas nas quais a dimensão racial importa, e onde normalmente isto pende de maneira negativa para negros" (SANTOS, 2012, p. 42). O sistema jurídico e todo o aparato repressivo-punitivo, incluindo o sistema penitenciário, configuraram uma política criminal em relação ao consumo de substâncias psicoativas (SPAs), em que imperou a seletividade penal.

Nesse arcabouço, torna-se indefensável o princípio liberal de que todos "são iguais perante a lei". Logo, o direito positivo é maculado, existindo racismo sobretudo na forma de implementar a política sobre drogas no país, segundo Monsma (2013), a partir de dupla dimensão: (1) dominação étnica, de um grupo que se sente superior e que domina outros; e (2) dominação ideológica, ao essencializar negativamente o grupo subordinado.

Na década de 1930, o Brasil ingressa no processo acelerado de modernização, ocasionando mudanças nas elites dominantes com a "revolução pelo alto" (VIANA, 1983). A partir disso, as manifestações da questão social tornam-se caso de política, erigindo todo o sistema de proteção social do país, fundado em um sistema de proteção social meritocrático e particularista (DRAIBE, 1989). Este, por sua vez, inaugura a cidadania regulada (SANTOS, 1987), voltada para uma parcela ínfima da população brasileira, o trabalhador urbano, com oficio reconhecido. Tal estrutura processa uma cisão entre o trabalhador e o pobre, a partir da política social. Ou seja, a própria ação estatal recria desigualdades sociais (TELLES, 1999) ao restringir direitos e fazer a distinção entre segmentos que "vivem do trabalho" (ANTUNES, 1998).

Logo, as desigualdades sociais no Brasil se reproduziram nas políticas sociais, conjugadas a todo o contexto ditatorial que predominou em suas origens e desenvolvimento, em meio à construção de uma esfera de disputa de projetos e modelos de trato da questão social para o país. Dessa forma, as políticas sobre drogas no Brasil, desde suas origens, interseccionaram as dimensões de classe social, gênero e étnico-raciais, com direção bem delineada da elite masculina branca contra os homens pobres e negros.

No período da Ditadura Militar de 1964, a população indígena se torna, também, alvo da política de segurança nacional no cerne da "guerra às drogas". Tal política evidencia-se na "Operação Maconha", de 1978, como uma explícita guerra que confronta dois universos culturais distintos, do aparato branco contra os índios Guajajara. Por meio de campanhas inspiradas em marcadores racistas, observa-se uma "clara vontade etnocida por parte da nossa civilização, que busca denegrir e suprimir aspectos considerados indesejáveis na cultura dos remanescentes indígenas no Brasil" (HENMAN, 2016, p. 320). Há, também, contraposição à legislação de então, que protegia os costumes indígenas em relação ao consumo da maconha, inserido em práticas rituais e sob controle cultural.

Paulatinamente, ocorrem as disputas em torno dos variados sentidos e usos das SPAs, inclusive inseridos no narcotráfico, como via de trabalho informal para um número significativo de jovens, pobres e negros, das periferias brasileiras, enquadrados como traficantes. Deste modo, as diferenças raciais, associadas às condições socioeconômicas precárias e aos valores culturais contra-hegemônicos, comumente vulnerabilizam determinados segmentos que têm as piores posições na hierarquia social. Como afirma Barata (2009, p. 56), "qualquer consideração das desigualdades sociais em relação a grupos étnicos carrega a dupla determinação: a posição social que tais grupos ocupam na sociedade e a aceitação/rechaço que possam ter frente aos grupos majoritários".

A política de saúde mental, álcool e outras drogas reproduziu o mesmo padrão, pois todo o modelo manicomial foi erigido para responder às questões sociais trazidas pelos loucos pobres (RESENDE, 1990), muitos dos quais não brancos, como informam Conceição, Nery e Pinho (2002). Logo, o acesso e usufruto de direitos sociais são socialmente determinados. Historicamente, a política de saúde se conformou com um duplo padrão de organização; de um lado, para atender ao trabalhador segurado do sistema previdenciário. De outro, para atender ao pobre, via Ministério da Saúde, oferecendo, no geral, um serviço de baixa qualidade, reforçando as iniquidades sociais.

Com a redemocratização da sociedade brasileira e fruto das lutas sociais, a Constituição Federal de 1988 produz uma ruptura na política de saúde ao afirmar, em seu art. 196, que "saúde é direito de todos e dever do Estado". Ao institucionalizar o Sistema Único de Saúde (SUS) na Seguridade Social, postulando a universalidade do direito, ocorre a ampliação da cidadania no plano legal/constitucional, que abarca a todos indistintamente. Nessa nova configuração histórica, novos modelos e novas perspectivas de compreender o consumo e os consumidores de SPA emergem, tendo por paradigma a redução de danos, fundamentada nos direitos humanos, o que tensiona a concepção proibicionista dominante.

Objetiva-se, por meio deste artigo, analisar o racismo constitutivo na e da política proibicionista, que vem orientando as ações sobre drogas no Brasil. Além disso, busca sinalizar o paradigma da redução de danos como antídoto antirracista, por sua relação imbricada com os direitos humanos e a equidade, através da crescente preocupação da configuração assistencial em se moldar às necessidades culturais e sociais dos usuários.

Sem a pretensão de exaurir a discussão, busca-se trazer elementos para o debate em um contexto de intensos acirramentos, na perspectiva de desmonte do SUS e tendência de remanicomialização da política de saúde mental, álcool e outras drogas...

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