Racismo, trabalho e Previdencia Social no Brasil/Racism, work and Social Security in Brazil.

AutorLima, Jessika Larissa Sousa
CargoREVISTA EM PAUTA

Introducao

O Brasil e um pais em que o racismo marca estruturalmente as relacoes sociais. As raizes dessa questao sao longinquas, mas a sua forca permanece viva no tempo presente. Assim, notam-se suas manifestacoes em diversas dimensoes da realidade brasileira. A configuracao do mercado de trabalho e os limites de acesso da populacao negra aos direitos dele derivados sao fortes manifestacoes do racismo, ainda que tais nao se limitem a esta dimensao. O cotidiano esta pleno de exemplos. Todavia, neste trabalho, o proposito e centralizar a atencao nesta dimensao da realidade social, dada a inexpressiva existencia de trabalhos academicos que versem sobre a relacao entre racismo, mercado de trabalho e previdencia social no Brasil.

Sabe-se que a previdencia social se estruturou no Brasil no contexto da industrializacao (SILVA, 2012). Suas marcas estruturais mais relevantes entre os anos 1920 e 1960 foram sua profunda dependencia do trabalho assalariado e sua organizacao a partir de categorias ocupacionais que atuavam em atividades economicas essenciais e que tinham capacidade de mobilizacao e pressao em defesa de seus direitos, iniciando pelos ferroviarios, maritimos e portuarios. O leque de categorias foi sendo ampliado, de modo que, a partir dos anos 1970, outras categorias, como trabalhadores rurais e empregadas domesticas, passaram a ter acesso a esta protecao, ainda que de maneira limitada.

Estas categoriais contam com um contingente de pessoas negras. Porem, somente com a Constituicao Federal de 1988, quando a previdencia social passou a compor a seguridade social, a possibilidade de universalizacao do acesso a previdencia social comecou a existir. Todavia, a universalizacao do acesso jamais foi alcancada e, a partir do movimento de contrarreforma da seguridade social, iniciado na decada de 1990 (SILVA, 2018), esta possibilidade torna-se cada vez mais remota ao conjunto da classe trabalhadora. Isso ocorre nao apenas pelas inumeras restricoes impostas por este movimento de contrarreforma da previdencia e do trabalho (SILVA, 2017), mas tambem pela elevacao das taxas de desemprego e do trabalho precario no pais.

Por diversos fatores, incluindo o racismo, na sociedade brasileira os vinculos trabalhistas e as condicoes de trabalho sao heterogeneos. Indicadores sociais evidenciam que a populacao negra e a principal atingida pela precariedade das condicoes de vida e de trabalho, quando comparada a populacao branca, na desocupacao e no trabalho informal, alem de possuir menores rendimentos. Tal situacao repercute no acesso dos negros a previdencia social, uma vez que do contingente da populacao economicamente ativa (PEA) os que se encontram fora da cobertura previdenciaria sao, sobretudo, aqueles que "estao em ocupacoes precarias, possuem os menores rendimentos ou nao os possuem de forma alguma, possuem os menores niveis escolares ou sao analfabetos funcionais" (SILVA, 2012, p. 42).

Como ja destacado, nos limites deste artigo, o proposito e refletir sobre essas e outras relacoes entre o racismo, a estruturacao e a expansao do mercado de trabalho, bem como sobre os limites de acesso da populacao negra a previdencia social no Brasil. Para tanto, e importante demarcar logo de inicio dois parametros teoricos. O primeiro e a concepcao de racismo e o segundo e a sua caracterizacao central que orientam este trabalho.

Quanto a concepcao de racismo, recorre-se a Flauzina (2008, p. 16), para quem o racismo constitui "uma doutrina, uma ideologia, ou um sistema sobre o qual se apoia um segmento populacional considerado superior, por causa de caracteristicas fenotipicas ou culturais, a fim de conduzir e subjugar um outro tido como inferior". Segundo a autora, a concepcao de racismo contem outros elementos para alem desta definicao que o tornam uma "forma de catalogacao dos individuos, afastando-os ou aproximandoos do sentido de humanidade de acordo com suas caracteristicas raciais" (FLAUZINA, 2008, p. 16).

No que se refere as caracteristicas centrais do racismo, considerase essencial a compreensao de Procopio (2017), para quem o racismo comparece na sociedade brasileira como um elemento estrutural e estruturante:

Afirmar que o racismo e estrutural implica pensa-lo como sendo relativo do fundamento das sociedades ocidentais contemporaneas [...e] de outra parte, o racismo tambem e estruturante, entao funciona como elemento dinamico que favorece, condiciona e mantem um tipo especifico de racionalidade. (PROCOPIO, 2017, p. 30).

A partir dessa compreensao e com o proposito assinalado, este trabalho esta organizado de modo que, a esta introducao, segue o seu desenvolvimento composto por dois eixos. O primeiro intitula-se capitalismo, escravidao e racismo, o segundo, o racismo como um dos determinantes do acesso precario da populacao negra ao mercado de trabalho e a previdencia social no Brasil. Ao final encontram-se consideracoes necessarias.

Capitalismo, escravidao e racismo

A chamada acumulacao primitiva originaria, pre-condicao para o capitalismo, segundo Marx (2015), esta intrinsecamente relacionada ao processo de colonizacao das Americas e das Antilhas, da mesma forma que o desenvolvimento do capitalismo na America Latina esta articulado com a dinamica do capitalismo internacional (MARINI, 1990). Assim, o escravismo brasileiro, mais forte expressao material do racismo, ainda que possua uma trajetoria historica especifica, sofre determinacoes da dinamica mundial. Ha vinculos conformados historicamente que articulam a expansao do capitalismo internacional com a instituicao do sistema escravocrata e com o desenvolvimento do capitalismo na America Latina, inclusive no Brasil. Assim, capitalismo, escravidao e racismo no Brasil compoem e articulam-se em uma totalidade inclusiva, o capitalismo mundial, ou, se preferirmos, a dinamica de transformacao do modo de producao feudal em capitalista e o seu processo de expansao e amadurecimento.

Ao falar do surgimento da estrutura economica da sociedade capitalista, a partir da estrutura economica da sociedade feudal, Marx (2015, p. 786) afirma que:

A relacao capitalista pressupoe a separacao entre os trabalhadores e a propriedade das condicoes da realizacao do trabalho. Tao logo a producao capitalista esteja de pe, ela nao apenas conserva essa separacao, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relacao capitalista nao pode ser senao o processo de separacao entre o trabalhador e a propriedade das condicoes de realizacao de seu trabalho, processo que, por um lado transforma em capital os meios sociais de subsistencia e de producao e, por outro converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados.

Dessa forma, segundo o autor, a producao capitalista so se desenvolveu quando o trabalhador foi transformado em "livre" vendedor de sua forca de trabalho e assim pode leva-la a qualquer lugar onde havia mercado para ela. Livre por dispor como pessoa livre da servidao de sua forca de trabalho como mercadoria e tambem por estar inteiramente despojado dos meios de producao. Desse modo, a libertacao da servidao e da coacao corporativa foi um dos movimentos historicos que transformou produtores rurais e camponeses em assalariados. Mas estes trabalhadores libertos da servidao so comecaram a vender sua forca de trabalho no mercado depois que foram expropriados de todos os meios de producao e privados de todas as garantias afiancadas pelas velhas instituicoes feudais. A "historia dessa expropriacao esta gravada nos anais da humanidade com tracos de sangue e fogo" (MARX, 2015, p. 787).

Esse processo historico que dissociou o trabalhador dos meios de producao foi denominado por Marx (2015) de acumulacao primitiva exatamente por constituir, em sua visao, a pre-historia do capital e do modo de producao capitalista. Para o autor, embora os prenuncios da producao capitalista ja tivessem aparecido nos seculos XIV e XV, em algumas cidades mediterraneas a era capitalista propriamente dita so surge no seculo XVI. A expropriacao da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao campones, constitui a base desse processo de acumulacao primitiva retratado por Marx (2015). E uma historia com caracteristicas diversas de pais para pais, que percorre fases em sequencias e epocas historicas diferentes. Em suas reflexoes sobre o assunto, Marx (2015) toma como exemplo a Inglaterra, por considerala o pais em que a expropriacao se apresentava em...

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