A razão governamental de Alberto Torres

AutorAlexandre de Paiva Rio Camargo
CargoProfessor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Candido Mendes (PPGSP-UCAM)
Páginas342-372
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n40p342/
342342 – 372
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A razão governamental
de Alberto Torres
Alexandre de Paiva Rio Camargo1
Resumo
O artigo investiga a obra de Alberto Torres sob o ponto de vista da introdução de uma razão go-
vernamental no pensamento político brasileiro, pautada pela lógica da prevenção e da estruturação
do campo de ações possíveis. Parte das reexões de Michel Foucault sobre a governamentalidade
para examinar a visão torreana de modernização e procura mostrar que a arquitetura do Estado
desenhada em A organização nacional e O problema nacional brasileiro é inseparável das medi-
das destinadas a produzir o “homem novo” como sujeito ético capaz de enfrentar os riscos da
vida social, o que constitui um marco de ruptura na tradição do pensamento político e social.
A razão governamental é analisada quanto aos seguintes aspectos: a inuência da sociabilidade da
escravidão na concepção de população, baseada na lógica afetiva e nas interações comunitárias;
a reforma do regime jurídico e a formação de um regime de opinião, na direção de um governo
das percepções; o lugar da política racial e do povoamento territorial na expansão da capacidade
administrativa do Estado e na regulação da agência humana.
Palavras-chave: Governamentalidade. Política de População. Coordenação Nacional. Pensamen-
to Social. Primeira República.
Introdução
O presente texto propõe uma leitura alternativa da obra de Alberto
Torres (1865-1917), por ocasião do centenário de seu falecimento. Em
primeiro lugar, porque ela permanece insucientemente compreendida.
Predominam interpretações de segunda mão a seu respeito, escritas por
intelectuais que reivindicaram sua paternidade para se apropriar de seu
1 Professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Candido Mendes
(PPGSP-UCAM). Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Mestre e Bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
E-mail: alexandre.camargo.2009@gmail.com
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 40 - Set./Dez. de 2018
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legado segundo seus próprios objetivos e suas visões da política e da socie-
dade. Este é o caso notório, certamente não único, de Oliveira Vianna, seu
principal difusor nos anos 1920 e 1930. Em segundo lugar, porque parte
expressiva da abundante literatura a seu respeito tende a privilegiar sua
obra pelos elementos ideológicos que encerra, vendo nela as bases do pen-
samento nacionalista (MARSON, 1979) e autoritário (LAMOUNIER,
1985) entre nós. São numerosos os trabalhos que relacionam os escritos de
Torres à recepção do vitalismo e do solidarismo no contexto de uma socie-
dade clânica, carente de continuidade política e unidade de ação pública
(SANTOS, 1978; IGLÉSIAS, 1978; LEMOS, 1995)
Neste cenário, sente-se a ausência de um estudo sobre as possíveis ho-
mologias entre o universo semântico de seu pensamento e a montagem do
Estado que se organiza a partir da revolução de 1930, cujas bases come-
çam a ser desenhadas nos anos que seguem a publicação de A organização
nacional e O problema nacional brasileiro2. Ou seja, um estudo sobre a cir-
cularidade entre as categorias mobilizadas nestas obras e o aparecimento,
em outros atores e marcos institucionais, de uma ideia de sujeito insepará-
vel da concepção de Estado. Ao se debruçar sobre o tema da construção do
Estado, as obras acima relacionadas tenderam a abordá-lo sob o prisma da
polarização entre liberalismo e autoritarismo. Ressentem-se de um exame
mais detido sobre as relações entre a arquitetura do Estado e a produção do
cidadão enquanto sujeito ético, manifesta na inédita – e, logo, generaliza-
da – preocupação com os saberes e práticas que deveria possuir o homem
nacional, de modo a viabilizar o tão desejado “homem novo”, este elo entre
o tradicional e o moderno, entre a cultura e a civilização.
Considerado um dos primeiros porta-vozes da questão social entre nós,
e, possivelmente, o primeiro a convertê-la em “questão nacional”, Torres
viu na construção do Estado a condição tanto da esfera pública quanto da
personalidade moral do “homem nacional”. Visão que não se reduziu aos
liames do pensamento autoritário, instalando-se como credo entre as elites
2 Ambos os livros foram originalmente publicados como série de artigos na imprensa carioca. No caso de
A organização nacional, os artigos foram editados entre novembro de 1910 e fevereiro de 1911 na Gazeta de
Notícias. Já O problema nacional brasileiro é uma combinação de um discurso proferido no Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, em 1911, e alguns artigos publicados no Jornal do Commercio, em 1912.

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