A recepcao da Topica ciceroniana em Theodor Viehweg (1)/The reception of the Ciceronian Topica in Theodor Viehweg.

AutorCarvalho, Angelo Gamba Prata De

Introducao

Na decada de 1950, foram publicados os principais trabalhos daqueles que hoje sao denominados os precursores da Teoria da Argumentacao Juridica. Segundo Manuel Atienza (2002, p.45), as tres linhas de pensamento mais relevantes que foram originadas nesse periodo sao a topica de Theodor Viehweg, a nova retorica de Chaim Perelman e a logica informal de Stephen Toulmin.

As obras desses autores caracterizam-se pelo objetivo comum de superacao do paradigma cartesiano de racionalidade, questionando a exigencia da aplicacao do metodo demonstrativo as ciencias propriamente argumentativas. A discussao epistemologica em torno da necessidade do reconhecimento da existencia de uma diferenca entre os metodos remete a oposicao feita por Aristoteles entre raciocinio apoditico e raciocinio dialetico, resgatada pelos precursores da Teoria da Argumentacao Juridica.

O raciocinio apoditico relaciona-se ao dominio do necessario e do conhecimento das causas, o que e assegurado por meio da demonstracao, que Aristoteles chamou de silogismo cientifico. O silogismo cientifico se da quando as premissas que levarao a determinada conclusao sao verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas, anteriores e causas da conclusao. O raciocinio dialetico, por sua vez, orienta-se pelo campo do contingente, aquilo que pode ser de outra forma. Trabalha-se com o verossimil, ou seja, aquilo que e aceito pela comunidade como parecendo verdadeiro, como aponta Aristoteles nas Refutacoes Sofisticas. Desse modo, a dialetica nao se propoe, como ocorre no raciocinio apoditico, a promover um monologo demonstrativo da verdade, mas uma praxis argumentativa que pressupoe o conflito entre discursos e um publico a ser persuadido, publico este que determinara qual dos interlocutores foi bem sucedido em sua argumentacao (2). O raciocinio dialetico admite, portanto, a possibilidade de discursos contraditorios, tendo em vista que o publico tem condicoes de apreender as opinioes geralmente aceitas (endoxa) e descartar aquilo que for contraditorio. (BERTI, 1998, p. 3-40).

Theodor Viehweg, sobretudo em seu Topica e Jurisprudencia, propoe um resgate do pensamento topico elaborado por Aristoteles e Cicero, tendo por ponto de partida a divisao feita por Vico entre o pensamento antigo (topico ou retorico) e o pensamento moderno (o metodo critico cartesiano). Viehweg busca demonstrar que a Ciencia do Direito e construida pelo pensamento problematico, definindo-se a topica como uma tecnica de pensar por problemas, importante para a compreensao da jurisprudencia como um procedimento para sua discussao. (VIEHWEG, 1979, p.17-32).

Este trabalho tera por objeto de analise a recepcao da topica de Cicero pela teorizacao da topica elaborada por Viehweg. Para que seja demonstrada a importancia do autor latino na teoria de Viehweg, serao expostas as diferencas existentes entre a topica de Aristoteles e a de Cicero. Entao, serao introduzidos os conceitos que norteiam a concepcao de Viehweg de que a Jurisprudencia e caracterizada por uma estrutura topica e, como se colocara, pela predominancia do pensamento problematico. Sera abordada, ainda, a importancia historica da Topica de Cicero, em paralelo com a ligacao entre topica e Jurisprudencia tracada por Viehweg.

  1. As Duas Topicas

A fim de promover uma maior compreensao acerca da natureza da topica, Viehweg parte de uma explanacao daquilo que foi desenvolvido no campo da topica por Aristoteles e Cicero, relacionando as caracteristicas de cada um dos trabalhos a sua importancia historica.

Embora Aristoteles tenha sido o grande nome inspirador da Teoria da Argumentacao Juridica dos anos 50, Viehweg (1979, p. 27-28) sugere que a Topica ciceroniana, mesmo que de nivel teorico inferior a aristotelica, foi de maior importancia historica e prevaleceu sobre a tradicao posterior. Esse aspecto e destacado em razao do amplo uso dos trabalhos de Cicero feito pelas escolas romanas de retorica e pela inclusao da disciplina nas chamadas artes liberais medievais (3), estando a Retorica incluida no trivium.

A seguir sera apresentado, portanto, o conteudo das duas topicas, para que se possa confrontar suas diferencas e implicacoes a teoria de Viehweg posteriormente.

2.1 A Topica de Aristoteles

A Topica e o quinto dos seis livros que compoem o Organon, conjunto de tratados de logica escritos por Aristoteles. De acordo com Viehweg (1979, p. 23), a topica consiste no retorno a antiga arte da disputa, da retorica e da sofistica. E a partir da topica que Aristoteles ressalta as diferencas entre o modo de pensar apoditico (que se ocupa do campo da verdade) e o dialetico (que trata do oponivel ou, segundo o proprio Aristoteles, daquilo que parte das opinioes geralmente aceitas), com base no instrumental que formulou nos primeiros tratados do Organon (4).

Aristoteles inicia a Topica colocando que o que pretende e:

"[...] encontrar um metodo de investigacao gracas ao qual possamos raciocinar, partindo de opinioes geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos tambem capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cause embaracos." (ARISTOTELES, 1987, p.32). Um ponto a que Aristoteles confere grande importancia, nesse sentido, e o da definicao de cada tipo de argumento. O autor aponta e qualifica, entao, os argumentos apoditicos e dialeticos, alem de assinalar a existencia do raciocinio eristico (que parte de opinioes que parecem ser geralmente aceitas, mas nao o sao realmente) e tambem dos paralogismos (raciocinios incorretos, relacionados a uma ciencia particular, como a geometria).

A topica vem corroborar, como ja foi mencionado, o instrumental logico prescrito pelos demais tratados do Organon, de modo que se aplicam ao raciocinio dialetico as categorias e a estrutura silogistica, de essencial importancia no processo de descoberta de premissas para a argumentacao que a topica pretende promover. Uma diferenca importante entre a Topica de Aristoteles e a de Cicero, como se vera, e a extensa teorizacao filosofica com a qual se preocupa Aristoteles antes da discussao da topica como praxis da disputa argumentativa e do metodo da topica (5).

A Topica e descrita por Aristoteles como um lugar de teorizacao do raciocinio dialetico. Segundo a analise de Viehweg: "Topoi sao, portanto, para Aristoteles, pontos de vista utilizaveis e aceitaveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que e conforme a opiniao aceita e que podem conduzir a verdade." (VIEHWEG, 1979, p. 26-27)

A nocao de conhecimento dialetico que Aristoteles desenvolve e parte estrutural de seu sistema filosofico, de modo que a dialetica, compreendendo a topica como um de seus aspectos, possui determinadas utilidades que sao elencadas no capitulo 2 do primeiro livro da Topica. "Depois do que precede, devemos dizer para quantos e quais fins e util este tratado. Esses fins sao tres: o adestramento (6) do intelecto, as disputas casuais e as ciencias filosoficas". (ARISTOTELES, 1987, p. 34)

Consoante ao que escreve Enrico Berti (1998, p. 32-33), a primeira das utilidades consiste na afirmacao do carater tecnico da dialetica, no sentido de qualifica-la como arte (techne). Esse primeiro ponto e formulado no sentido de introduzir o leitor a uma pratica largamente disseminada, porem fracamente disciplinada, a fim de se conferir mais eficacia e facilidade a sua pratica. E nesse sentido que Aristoteles utiliza o termo grego gymnasia.

O segundo uso consiste no uso publico da dialetica, ou seja, em sua aplicacao natural aos generos deliberativo, judicial e epiditico, situacoes em que importa que se prevaleca sobre o interlocutor por meio do reconhecimento do auditorio a que se destina o discurso. Nesse sentido, e ressaltada a caracteristica da dialetica de trabalhar com as opinioes compartilhadas por muitos, isto e, pelos ouvintes e pelos interlocutores, caracteristica esta que permite que a dialetica seja comparada as demais formas de raciocinio. (BERTI, 1998, p. 34)

Para Aristoteles, a dialetica e util em relacao as ciencias filosoficas pois, tendo a capacidade de desenvolver aporias em ambas as direcoes (as duas partes do dialogo), podemos distinguir mais facilmente, em cada uma, o verdadeiro do falso. A distincao do verdadeiro e do falso e, justamente, a proposicao das ciencias filosoficas e, considerando que estamos trabalhando num ambito em que e possivel investigar a fundo as consequencias que derivam de cada uma das alternativas de um dilema para que se chegue a uma conclusao satisfatoria, tal discussao e de grande utilidade para o pensamento aristotelico. (BERTI, 1998, p. 35-38)

Alem disso, Aristoteles propoe que a dialetica e util as ciencias filosoficas tambem quando surge o problema do conhecimento dos principios de cada ciencia, questao com a qual, em larga medida, se ocupa a ciencia apoditica. A...

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