Receptação

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas681-698

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20.1. Receptação: considerações gerais sobre o crime e receptação dolosa própria e imprópria

Natureza parasitária do delito. Alinhada no setor penal dos crimes contra o patrimônio, a receptação ancora-se tipicamente no art. 180 do CP, com suas variantes enunciadas nos desdobramentos subsequentes deste dispositivo penal.

A receptação é doutrinariamente considerada, como reflexo de sua arquitetura típica, crime acessório, dependente e parasitário de um delito anterior. Tem sua gênese e raízes típicas fincadas, como componente imprescindível de seu descortino jurídico, no pressuposto da ocorrência de um crime antecedente, denominado crime-base, delito de fundo ou crime originário anterior. Sob esse matiz, o delito de receptação deixa de alcançar silhueta e contornos típicos se não ficar demonstrada a existência do referido pressuposto.

"O crime de receptação pressupõe delito anterior, que comprove a origem delituosa da coisa" (RT. 548/386).

"Não havendo prova segura da origem criminosa da coisa, impõe-se a absolvição do acusado relativamente ao crime de receptação" (RT. 606/396)2250.

É destituída de importância à configuração do crime em apreço a precedente instauração de inquérito, processo ou mesmo a existência de sentença no tocante ao delito anterior2251, tanto que a receptação é punível ainda quando o autor do crime primígeno é menor inimputável, pessoa desconhecida, insano mental (art. 180, § 4º, CP) ou tem em seu favor uma escusa absolutória (filho que furta do genitor e, ato contínuo, vende o bem - art. 181, n. II, do CP). É irrelevante, anota Paulo José da Costa

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Júnior, que o delito originário tenha sido cometido no país ou no exterior2252. Também é indiferente se, por qualquer causa, extinguiu-se a punibilidade do autor do delito-base (morte do agente, anistia, graça ou indulto, crime de ação penal privada ou ação penal pública condicionada em relação ao qual não foi oferecida queixa-crime ou apresentada a condição de procedibilidade, que são meros atos de conotação processual e não elementos do crime, etc. - cf. art. 108, CP).

A lei não exige que o crime antecedente pertença à mesma família ou linhagem dos crimes patrimoniais propriamente ditos, motivo pelo qual a receptação pode ter sua gênese também em delitos de outra categoria, como, verbi gratia, peculato, contrabando ou descaminho, lenocínio, veículo de procedência regular com chassi adulterado etc., bastando que o delito primitivo de qualquer forma propicie ao agente da receptação um proveito patrimonial.

Com a referência da lei a coisa produto de crime, é indiscutível que o delito não se perfaz se a infração penal anterior for contravenção penal. Exemplifica Hungria a carência típica nesta situação: a guarda do dinheiro angariado por outrem como agente ou ponteiro de jogo de azar2253.

Vem a lanço acentuar, entretanto, que, embora seja considerado crime o fato típico, antijurídico e culpável2254, a alusão a crime, no preceito incriminador, foi empregada no caráter puramente objetivo (fato típico e antijurídico). Isso por força da explícita disposição entalhada no art. 180, § 4º, do CP que proclama punível a receptação ainda quando isento de pena o autor do crime anterior, o que evidencia ter afastado da compreensão típica deste vocábulo, em conotação de ressalva, a culpabilidade. Nesta vereda, quem, exempli gratia, adquire coisa que foi produto de furto cometido em estado de necessidade não perpetra receptação, uma vez que o bem adquirido não constituía produto de crime (carência de antijuridicidade na conduta anterior), mas se adquire produto de furto praticado por menor inimputável, é irretorquível a ocorrência da receptação.

De outro turno, o crime de receptação sempre é conexo com o delito que lhe serve de pressuposto típico. Ambos os crimes se interpenetram não somente no aspecto da influência probatória de um para o outro, mas, ainda, pelo fato de a receptação ser delito ulterior por meio do qual o agente do crime antecedente obtém, visando ao seu exaurimento, as vantagens que almejava. Por conseguinte, a receptação e o delito que lhe empresta conotação típica ostentam, sempre, além da conexidade substancial (art. 76, n. II, in fine, CPP), a formal ou probatória (art. 76, n. III, CPP). Por tal razão, ope conexitatis, devem submeter-se à mesma persecutio criminis in judicio, para unidade do processo e julgamento (simultaneus processus por unum et idem judex), determinandose a competência para o mister, para a fixação da vis attractiva e do denominado forum attractionis, segundo as normas editadas no art. 78 e incisos do diploma penal adjetivo. Inadmissível é, nessa conjuntura, em face do tecnicismo das regras e princípios

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processuais em vigor, a apuração destes delitos em procedimentos diversos e distintos, ou seja, a desvinculação jurídica, a cisão ou fragmentação dos referidos crimes com o rompimento da unidade processual consagrada na própria lei. Essa unidade processual entre estes crimes, em face da influência probatória de um para o outro, somente não se realiza se persistir em ângulo sombrio, ou seja, indeterminada, a autoria do delito antecedente, circunstância que torna inviável a sua persecução penal, quando, então, a receptação, como residual ou remanescente típico, considerada de forma isolada, deverá ser objeto de processo, ratione loci, no foro onde se consumou2255, ou seja,

geograficamente, no locus delicti commissi, no local onde ocorreu2256. Se a receptação se desenvolver em localidades diferentes (crime plurilocal), como, verbi gratia, aquisição da coisa malsinada em uma cidade e agente surpreendido quando a conduzia ou transportava em outra urbe, a competência deverá ser determinada pela prevenção2257.

Núcleos do tipo. Receptação própria e imprópria. O figurino típico da receptação, na sua modalidade dolosa fundamental (art. 180, caput, CP), consagra, na sua multiplicidade nuclear, duas modalidades do crime: receptação própria e imprópria. A primeira vem emoldurada nas condutas de adquirir, receber, ocultar, conduzir ou transportar. A derradeira se estampa na ação de influir para terceiro acolher a posse do objeto de origem malsinada.

Adquirir constitui conduta atrelada à obtenção da propriedade sobre a coisa, seja a título oneroso (compra, permuta, recebimento como dação em pagamento) ou gratuito (doação aceita). É possível também que a aquisição se origine de sucessão causa mortis, se o herdeiro sabia que a coisa fora obtida por meio criminoso pelo de cujus2258.

Sob outro aspecto, na aquisição onerosa é irrelevante o fato de o preço ser justo ou vil. O preço irrisório somente representa dado de valor para a aferição da receptação de índole culposa (v. n. 20.3). Na receptação dolosa, o que prepondera é o conhecimento pertinente à origem tisnada da coisa, e não o valor (justo ou ínfimo) por ela pago2259.

Receber expressa o comportamento daquele que acolhe o bem e o mantém consigo a título precário (mera posse), porque o proveito que visa a tirar da coisa é desprovido do animus rem sibi habendi, sendo de nenhuma importância o tempo de duração da detenção material. Exemplo: receber a coisa em penhor, para guardar, para tê-la em depósito, para usar etc.

Transportar resulta do complexo de atos tendentes a transferir, carregar, levar de um lugar para outro a coisa produto de crime anterior.

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Conduzir implica dar direção, dirigir. É conduta que, via de regra, está ligada à condução de veículos, mas igualmente pode apresentar-se sob outras formas: remeter pelo correio, por exemplo, é uma maneira de imprimir direção à coisa e conduzi-la a determinado destino por interpostas pessoas.

Ocultar denota conduta consistente em esconder ou encobrir, com a retirada do bem do campo de visão de outras pessoas, ou dissimular a presença da coisa de modo a confundi-la com outras semelhantes para não ser reconhecida. A ação de ocultar, regra geral, implicitamente subentende a conduta anterior de receber ou adquirir o bem. Nesse passo, a menção da lei, em que pese uma impressão de redundância, não é, contudo, pleonástica. Bem elucida Hungria: quem apreende a coisa abandonada pelo ladrão que visava a acobertar-se de suspeitas, e a oculta, para posteriormente entregá-la ao delinquente mediante recompensa, é, incontestavelmente, receptador e, no entanto, não se pode dizer que tenha adquirido ou recebido a coisa2260.

Influir, elemento nuclear exclusivo da receptação imprópria, consiste em exercer ação capaz de persuadir, convencer, induzir, estimular, animar, excitar, entusiasmar, enfim, terceira pessoa a adquirir, receber ou ocultar, de boa-fé, o produto de crime antecedente. Há uma mediação do agente entre o autor do crime anterior e o terceiro de boa-fé. Se o terceiro também estiver animado pela má-fé, ambos responderão pela receptação (quem influi como incurso na modalidade imprópria do crime e o terceiro na modalidade própria). Calha obtemperar que o núcleo influir está unicamente associado às ações do terceiro tendentes a adquirir, receber ou ocultar a coisa malsinada. O dispositivo não faz menção às condutas de transportar ou conduzir. Assim, se alguém induz terceiro de boa-fé a transportar ou conduzir, pratica conduta penalmente irrelevante, como com agudeza observa Cezar Roberto Bitencourt2261. Se o terceiro estiver de má-fé será coautor, sendo indiferente a natureza da ação que foi convencido a praticar.

O crime é de ação múltipla alternativa ou de conteúdo variável, de modo que a prática de mais de uma entre as condutas incriminadas não rompe a unidade do crime e não enseja regime concursal de delitos. As condutas serão consideradas, neste caso, fases do mesmo crime. Da mesma forma, delineia-se...

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