Recolocando a autodeterminacao na equacao? Uma analise da acao coletiva feminista na Europa do Sul/Putting self-determination back into the equation?/An analysis of feminist collective action in Southern Europe.

AutorSantos, Ana Cristina

Introdução

Este artigo examina a ação coletiva feminista na Itália e em Portugal no século XXI. A escolha dos países baseia-se parcialmente na literatura sociológica existente que constrói o sul da Europa como um contexto geopolítico com características distintas relativamente a regimes de bem-estar e regimes de gênero, quando comparado a outros países europeus (FERREIRA, 2005; TRIFILETTI, 1999; WALBY, 2001). A Europa dos Sul é frequentemente apresentada na literatura como patriarcal, católica, conservadora e familista (FERREIRA, 2005), o que contribui para reforçar uma imagem um tanto homogênea de países como Portugal, Espanha e Itália.

Também na esfera da prestação de cuidado e dos serviços públicos, os países da Europa do Sul são descritos como dispondo de uma forte "sociedade-providência" (SANTOS, 1993), em contraste com a baixa provisão assegurada pelo Estado-providência, característica decorrente da sua posição semiperiférica no sistema mundial, bem como do legado de ditaduras que constam de boa parte da história desses países. Nesse contexto, as mulheres são consideradas um elemento principal da chamada "socie-dade-providência" (PORTUGAL, 1998; SANTOS, 1993).

Independentemente de semelhanças sociais e políticas entre países da Europa do Sul, defendemos que uma imagem generalizada desses contextos corre o risco de reforçar estereótipos em vez de os submeter a um questionamento crítico adequado. De fato, a literatura sociológica sobre o sul da Europa tende a descurar diferenças importantes entre países, contribuindo para um imaginário homogêneo, embora precário, acerca do outro. Conscientes dos riscos, neste artigo reconhecemos pontos em comum, ao mesmo tempo que exploramos características específicas da ação coletiva feminista em Itália e em Portugal. Nesse desiderato, serão considerados os contextos históricos, legais e políticos diversos em cada país relativamente à autodeterminação e aos direitos das mulheres. Esse esforço será informado por uma análise sócio-histórica, visando uma melhor compreensão de diferenças e semelhanças entre os dois países.

Esperamos que este artigo contribua para questionar, repensar e reconfigurar teorias contemporâneas sobre regimes de gênero em cada contexto, bem como na Europa do Sul em geral. Ao analisarmos objetivos, estra-tégias e resultados dos movimentos de mulheres em Itália e em Portugal, pretendemos ainda contribuir para um conhecimento mais amplo sobre a ação coletiva no século XXI.

Desigualdade de gênero ao longo dos tempos

Itália e Portugal foram atravessados por longos períodos de ditadura. Em Itália, o regime de Mussolini durou 20 anos (1922-1943); em Portugal, primeiro Salazar e mais tarde Caetano governaram durante 48 anos (1926-1974). A ausência de liberdade e direitos atingia, com maior incidência, setores específicos da população, sendo que as mulheres se encontravam entre os grupos mais penalizados. Em Portugal, as mulheres não tinham permissão para viajar para fora do país ou manter uma conta bancária sem a autorização por escrito do marido, e as mulheres casadas estavam legalmente proibidas de exercer uma profissão que implicasse trabalho noturno.

Essas restrições, entre outras, formaram a espinha dorsal de um regime que considerava "Deus, pátria e família" o modelo tríplice de governação, confundindo religião e política de maneiras que abrangiam todas as dimensões da experiência pública e privada. Durante esse período, expressões de dissidência foram alvo de perseguição e prisão, e comícios ou qualquer outra forma de "reunião de mais de duas pessoas" foram proibidos. Sob tal regime, as únicas formas de ação coletiva não apenas permitidas, mas ativamente encorajas, eram reuniões com fins caritativos ou assembleias religiosas que favoreciam a doutrinação moral incentivada pelo ditador Salazar.

O cenário italiano não é muito diferente nesse sentido. Embora Itália seja uma democracia desde 1946 e, no mesmo, ano o direito universal ao voto também tenha sido concedido, os efeitos das regulamentações fascistas duraram muito tempo. Por exemplo, somente em 1996 a violação deixou de ser crime contra a moralidade pública (como sucedia durante o fascismo) para passar a ser definida por crime contra indivíduos (Lei no 66, de 15 de fevereiro de 1996). Como em Portugal, em Itália o regime fascista também operava em estreita ligação com instituições católicas, promovendo ideias de mulheres como figuras submissas, cuidadoras e sujeitas aos poderes masculinos da família.

Tal contexto sociocultural restritivo teve um forte impacto nas condições de emergência dos movimentos sociais após a transição democrática. Em Portugal, a pobreza e a raiva foram acompanhadas por elevados níveis de analfabetismo, combatido pelo Poder Executivo eleito. Os movimentos de mulheres, em particular, herdaram as dificuldades cumulativas decorrentes da repressão política e do patriarcado, colocando o sexismo no centro dos problemas socioculturais. A nova Constituição promulgada em 1976-a primeira após a mudança para a democracia em 1974-estabeleceu a igualdade entre mulheres e homens como um princípio central. Esse documento foi celebrado internacionalmente como uma das constituições mais inclusivas do seu tempo.

Estas e outras mudanças legais significativas não apagaram a desigualdade que continuou a caracterizar as vivências íntimas. Por exemplo, a expectativa de que as mulheres sejam as principais prestadoras de cuidados a crianças e pessoas idosas é ainda constitutiva da cultura dominante de prestação de cuidados na Europa do Sul. Essa expectativa decorre de uma cultura de familismo que atribui maiores responsabilidades às famílias nucleares no apoio emocional e financeiro (GONZÁLEZ-LÓPEZ, 2002).

Portanto, já que a igualdade formal não se traduz necessariamente em igualdade de fato, as mulheres e outros grupos identitários cedo se aperceberam da necessidade de ação coletiva, visando denunciar práticas discriminatórias e exigir justiça genuína. Essa transição feminista-que aconteceu em momentos e em ritmos diferentes em Itália e em Portugal-foi acompanhada e apoiada pela entrada na União Europeia (em 1957 como Estado fundador e em 1986, respectivamente). De fato, as políticas de gênero produzidas no nível da UE colocaram pressão no sentido de avanços institucionais para a igualdade de gênero no nível local (estatal), consubstanciando as reivindicações apresentadas pelos movimentos de mulheres.

Itália e Portugal hoje

Verificam-se elementos recorrentes nos dois países que permitem identificar semelhanças sem ignorar as particularidades de cada contexto. No entanto, a compreensão de aspectos históricos e sociais específicos dos contextos português e italiano é fundamental para situar os movimentos feministas contemporâneos não apenas como experiências especificamente localizadas, mas também em relação às vagas internacionais de ativismo.

Uma característica primordial do contexto contemporâneo é o fato de a Igreja Católica reter um monopólio quase inquestionável em ambos os países. Segundo o Projeto de Futuros Religiosos Globais da Pew-Tem-pleton, 91,9% das pessoas portuguesas e 83,3% das pessoas italianas definiram-se em 2017 como católicas (1). No entanto, os processos de secularização reduziram consistentemente o número de praticantes reais e aumentaram a distância entre a religião católica e uma cultura católica. Segundo o Istat, o Instituto Nacional Italiano de Estatística, em 2016 apenas 29% da população era católica praticante.

Portanto, se, por um lado, a participação em serviços religiosos diminui a cada ano, a influência das instituições católicas ainda permeia a vida social, política e econômica, principalmente no que diz respeito à regulamentação da cidadania sexual (SANTOS; TOLDY, 2016). A interferência do Vaticano nos debates políticos sobre aborto, direitos LGBT e questões de gênero é consistente e, especialmente em Itália, exerce efetivamente uma influência sobre as políticas internas (GRIGOLO; JORGENS, 2010).

A influência católica em todos os aspectos da vida social estendese também a pessoas não praticantes ou que não são batizadas: em ambos os países há um grande número de escolas e universidades católicas, bancos, fundações, hospitais e casas de repouso. Nos últimos anos, as instituições católicas e movimentos antifeministas canalizaram uma pressão crescente contra a suposta disseminação do que designam por "ideologia de gênero": os movimentos feministas são hoje em dia também confrontados com a acusação de promover uma ideologia perigosa que prejudica crianças e famílias (MAGARAGGIA; VINGELLI, 2015).

Nesse contexto, o sexismo estrutural e a violência contra as mulheres são dois elementos que caracterizam a Itália e o Portugal contemporâneos. De fato, de acordo com o relatório mais recente do Eige-Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero (2)-a disparidade entre mulheres e homens é ainda significativa nos dois países: enquanto as posições de poder são ocupadas principalmente por homens, as mulheres são relegadas a papéis relacionados com cuidado, reprodução e dependência económica. Por exemplo, as atividades de prestação de cuidado e assistência são desempenhadas principalmente por mulheres, enquanto os níveis de recursos económicos permanecem fortemente diferenciados. Além disso, o relatório sinaliza que, em 2015, 27% das italianas e 25% das portuguesas entrevistadas afirmaram ter sido vítimas de violência sexual, confirmando o sexismo como uma das pragas das sociedades italiana e portuguesa contemporâneas. Não é de surpreender que a maioria das mulheres seja vítima de atos violentos por parte de parceiros, pais, ex-parceiros ou amigos (BET-TAGLIO et al, 2018).

Acresce que ambos os países enfrentaram consequências devastadoras da crise económica global iniciada em 2008. Nos últimos dez anos, as taxas de desemprego, o custo de vida e a insegurança aumentaram, provocando efeitos em cascata entre os grupos mais vulneráveis, em particular as mulheres. Dada...

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