Reconhecimento da parentalidade socioafetiva pela via extrajudicial

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)/Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas19-47

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Ver Nota12

O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), em 11/06/2015, aforou Pedido de Providências junto ao Conselho Nacional de Justiça ? autuado sob o nº 0002653-77.2015.2.00.0000 ?, com vistas a obter a regulamentação do registro civil de paternidade socioafetiva perante os Oficiais de Registro Civil do Brasil. Ou seja, pretende-se, com referido pedido, obter a regulamentação da possibilidade de reconhecimento, pela via extrajudicial, da parentalidade socioafetiva, valorizando, assim, o vínculo de filiação fático, real, afetivo, o qual, de fato, é capaz de contribuir para a promoção do desenvolvimento da personalidade das pessoas envolvidas na relação de perfilhação.

Contudo, indaga-se: o ordenamento jurídico pátrio se coaduna com tal possibilidade de reconhecimento da parentalidade socioafetiva? E, em caso positivo, tal reconhecimento pode se dar pela via extrajudicial?

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Com efeito, o nascimento de uma pessoa provoca, como regra geral, a sua inserção na estrutura social denominada de família, a qual é compreendida, atualmente, como a reunião de pessoas ligadas por vínculos sanguíneos e afetivos, responsável pelo desenvolvimento da personalidade de seus integrantes. Constitui a família, assim, a unidade primária de associação dos indivíduos, exteriorizando-se como centro de companheirismo e afeto a serviço das próprias pessoas que a compõem.

Contudo, o entendimento da família como ambiente em que cada pessoa busca a sua própria realização por meio do relacionamento com outra(s) pessoa(s) é, relativamente, recente na legislação brasileira, tendo sido concebida pela Constituição Federal de 1988. De fato, verifica-se que, desde a instituição da República Brasileira3, houve a identificação da família à união de pessoas pelo casamento, desconsiderando qualquer questão relativa à realização pessoal dos seus integrantes; buscava-se a máxima proteção da paz doméstica e do patrimônio familiar, sendo, assim, a família fundada no matrimônio considerada um bem em si mesmo, de essencialidade inquestionável. Desse modo, antes do advento da ordem constitucional ora vigente, “os vínculos interpessoais, para merecerem aceitação social e o reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio”.4Nessa esteira, vale dizer, anteriormente à vigência da atual Carta Magna, a legislação infraconstitucional adotava a concepção de identificação da família ao casamento e, por isso, o Código Civil de 1916 vedava o reconhecimento de quaisquer direitos às relações consideradas espúrias, adulterinas ou concubinárias. Apenas a entidade familiar tida por legítima merecia reconhecimento, o que implicava consequências à filiação, na medida em que só se admitia a perfilhação dos filhos concebidos na constância do casamento.

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Assim, diante da ligação necessária instituída entre o estado da filiação e o estado civil dos pais e, ainda, a associação feita entre paternidade/maternidade e ascendência genética, verificava-se, nesse momento, a exteriorização de duas verdades acerca da definição da filiação de uma pessoa: a verdade jurídica e a verdade biológica.

Em primeiro lugar, quanto à verdade jurídica, tem-se a atribuição da filiação a uma pessoa por meio de presunções traçadas pelo legislador, justificadas na necessidade de se manter o bem-estar familiar, bem como a unidade econômica e social da família, o que ocasiona, inclusive, o menosprezo à filiação biológica. Nesse passo, a primeira presunção de destaque diz respeito à maternidade, sendo esta considerada sempre certa, haja vista se traduzir por sinais exteriores – consequências corporais da gravidez e o parto. Já no que se refere à paternidade, tem-se a sua presunção vinculada aos laços do matrimônio, ou seja, será considerado pai aquele que esteja casado com a mãe no momento da concepção da criança. Dessa forma, os filhos concebidos sem a existência do casamento são considerados bastardos, adulterinos, ilegítimos, sem direitos juridicamente reconhecidos.5Desse modo, considerando a hegemonia da família patriarcal e matrimonializada, foram instituídas, pelo legislador, presunções de filiação, a saber: a) a presunção pater is est quem nuptia demonstrant – o pai é aquele que as núpcias demonstram, o que impede a discussão quanto a origem da filiação se o marido da mãe não a negar em curto prazo preclusivo –; b) a presunção mater semper certa est – a mãe é sempre certa, o que impede a investigação de maternidade contra mulher casada –; c) a presunção de paternidade atribuída àquele que manteve relações sexuais com a genitora no período da concepção; d) a presunção de exceptis

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plurium concumbentium – quando a genitora mantém relações sexuais com mais de um homem no período da concepção, surge incerteza quanto à paternidade, o que impede o seu reconhecimento6; e) a presunção de paternidade quanto aos filhos concebidos 180 dias antes do casamento e 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal.7Todavia, as alterações que se sucederam nas relações familiares – notadamente, a instituição da dissolubilidade do vínculo matrimonial, pela Lei nº 6.515/77 (Lei do Divórcio)8–, aliadas ao desenvolvimento médico-científico, permitiram a relativização das presunções de filiação, haja vista a intensificação da busca pela sua verdade real, situação esta que, inclusive, foi dotada de grande importância para a manutenção da família patriarcal9, na medida em que impede a atribuição

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da qualidade de filho legítimo a quem não possui vínculo de consanguinidade. Nesse sentido, a verdade biológica da filiação é identificada pelo vínculo genético existente entre pais e filhos, ou seja, a qualidade paterna ou materna é atribuída apenas a quem, biologicamente, tenha gerado uma nova vida: seu filho.

Destarte, de acordo com a biologia, “pai é unicamente quem, em uma relação sexual, fecunda uma mulher que, levando a gestação a termo, dá à luz um filho”10.

A prova dessa filiação é possível de ser feita cientificamente, sendo o exame de DNA o principal instrumento para a verificação da descendência genética, devido ao seu resultado se aproximar da exatidão.

Contudo, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da medicina científica e da biotecnologia possibilita o efetivo alcance da verdade biológica da filiação, também é responsável por sua relativização. Com efeito, são desenvolvidas técnicas de reprodução assistida, ou seja, técnicas que permitem a concepção de uma nova pessoa independentemente do ato sexual, por meio de método artificial, que supre, assim, a concepção natural, quando o futuro pai e/ou mãe tiver dificuldade ou impossibilidade de gerar um filho.

Nesse passo, são espécies de reprodução assistida: a concepção homóloga – em que é utilizado o material genético do próprio casal, sendo realizada a fecundação in vitro e, após, implantado o produto no útero da mãe –; e a concepção heteróloga – em que há a utilização de material genético de terceiro, ou seja, a fecundação em laboratório é realizada por meio da utilização de sêmen (e/ou óvulo) de outrem, sendo, assim, necessária a autorização expressa do cônjuge/companheiro, pois a ele será atribuída a perfilhação por presunção legal.

Desse modo, surgem novas presunções legais acerca da atribuição da filiação, as quais se distanciam da verdade biológica, mas permanecem vinculadas ao estado civil dos pais. Tais presunções encontram assento no Código Civil vigente, em seu art. 1.597, incisos III, IV e V, in verbis:

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Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: [...] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

A manipulação genética para a procriação humana populariza ideia de crucial importância para a alteração da concepção de filiação: o desinteresse pela sua origem. Com efeito, os métodos de reprodução assistida trouxeram facilidades responsáveis por permitir a qualquer pessoa realizar o sonho de ter um filho. Logo, há a desbiologização da paternidade11, tornando-se esta, rigorosamente, um ato de opção.

Em vista disso, é possível introduzir a terceira verdade acerca da atribuição da filiação, a qual é responsável por traduzir o real sentido da paternidade: a ver-dade socioafetiva. Com efeito, verifica-se que, tanto a verdade jurídica quanto a verdade biológica, são insuficientes para definir o vínculo de filiação face à atual conformação da entidade familiar, pois a família contemporânea não é mais, unicamente, formada pelo vínculo consanguíneo. Desse modo, há a constatação de que a certeza presumida ou científica da filiação é insuficiente para o reconhecimento do vínculo familiar, na medida em que outros valores são de essencialidade inquestionável, os quais se resumem na concepção da afetividade.

Pelo princípio da afetividade, o afeto12é o principal fundamento das relações familiares, sejam estas conjugais ou de paternidade/maternidade. Com efeito, a entidade familiar se torna um grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, os quais se exteriorizam, “em concreto, no necessário e imprescindível

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respeito às peculiaridades de cada um de seus membros, preservando a imprescindível dignidade de todos. Isto é, a família é o refúgio das garantias fundamentais reconhecidas a cada um dos cidadãos”13.

Nesse passo, tem-se que a afetividade decorre, diretamente, da dignidade da pessoa humana e, por isso, encontra guarida na ordem constitucional vigente, haja vista a eleição desse princípio como fundamento da República Federativa brasileira (art. 1º, III). De fato, a dignidade constitui prerrogativa atribuída a todo ser humano de ser respeitado e reconhecido como pessoa, com igualdade de direitos e deveres, o que a torna...

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