Recortes de intensas trajetorias.

AutorMorgado, Rosana

Escrever um texto em homenagem a Suely Souza de Almeida e uma honra e um privilegio. Debrucar-me de forma sistematica, sobre a trajetoria da pesquisadora, professora, gestora e militante dos campos tematicos: violencia de genero e politicas publicas; violencia estatal e lutas sociais; e direitos humanos e praticas sociais, todos com claros pontos de intersecao, significa revisitar tambem minha propria historia profissional e pessoal. Tive a oportunidade de acompanhar em 2005 seu concurso para Profa. Titular na Escola de Servico Social da UFRJ e ao ser convidada para escrever este artigo, utilizei como referencia o Memorial por ela apresentado. Considerei assim, que ninguem melhor do que a propria Suely, para falar de sua trajetoria.

Para Suely escrever um memorial remete ao desafio de contar uma historia, que e, ao mesmo tempo, singular e coletiva e, dessa forma, percorrer os territorios da memoria; implica deslocar-se em temporalidades distintas. Apoiada em Hobsbawm destaca que, o passado e uma dimensao permanente da consciencia humana, cujo sentido e um desafio analisar, sendo necessario localizar suas mudancas e transformacoes (1).

Ainda segundo Suely, referenciada em Maurice Halbwachs, contar tal historia supoe um exercicio de memoria, cuja caracteristica e ter, tambem, uma funcao coletiva. Cada memoria individual e um ponto de vista sobre a memoria coletiva, o qual guarda estreita relacao com o lugar ocupado pelo sujeito. Este lugar, por sua vez, se altera segundo as relacoes que sao mantidas com outros meios. Trata-se, pois, de uma memoria, que, cons* tituida de modo singular, nao deixa de ser, simultaneamente, coletiva, construida em um quadro economico, politico e cultural determinado, na relacao com outros sujeitos.

Suely, carioca, filha unica, nascida em 1956, casou-se e teve duas filhas, fez a graduacao e o mestrado em Servico Social na UFRJ, terminandoos respectivamente em 1977 e em 1986. Defendeu sua dissertacao de mestrado, sob orientacao de Moema Toscano, com o titulo: Violencia contra a mulher: determinacoes de classe e cultura. O doutorado em Ciencias Sociais foi concluido em 1996, na Pontificia Universidade Catolica de Sao Paulo, sob a orientacao de Heleieth Saffioti, relacionamento academico e pessoal, estreitado pela participacao de Heleieth como membro efetivo em sua banca de mestrado, marcando assim a consolidacao da escolha de seu tema de investigacao/intervencao politico/academica. Ao longo do doutorado, a realizacao de dois anos de periodo sanduiche no Centre National de la Recherche Scientifique, no entao--GEDISST--Groupe d' Etudes sur la Division Socialle et Sexuelle du Travail, sob a orientacao de Daniele Kergoat, propiciou os insumos necessarios para a apresentacao de sua tese intitulada: Violencia de genero: publico X privado, posteriormente publicada em livro (1998) com o titulo: Femicidio: algemas (in) visiveis do publico-privado.

Suely pontua sua trajetoria, relacionando-a a conjuntura do pais: uma jovem estudante de Servico Social, que ingressou na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1974, aos 17 anos de idade, ainda em pleno periodo de "caca as bruxas", viveu a luta pela democratizacao do pais e da propria universidade; foi maturando cada periodo da sua trajetoria profissional e academica, sem procurar saltar etapas; trabalhou como Assistente Social; tornou-se docente na area; fez a primeira etapa de seus estudos pos-graduados em Servico Social; tornou-se feminista; foi, gradativamente, se afastando do estrito debate profissional, sem jamais renunciar a centralidade da formacao de assistentes sociais, de pesquisadores (as) e de equipes interdisciplinares; desenvolveu e aprofundou estudos em violencia e relacoes de genero; doutorou-se em Ciencias Sociais; teve suas atividades academicas regulares interrompidas por dois periodos de ano e meio cada --um, por decisao propria, para complementar seus estudos doutorais na Franca, e outro, involuntariamente, para tratar da saude--e, hoje, faz o caminho de volta ao Servico Social--conquanto enfatizando ainda mais o dialogo interdisciplinar--pela porta da pesquisa sobre Direitos Humanos, sem abandonar os temas precedentes; hoje, aos 49 anos de idade, estando prestes a completar 28 anos de graduada e 21 anos como docente desta Escola, decidiu fazer um concurso para a vaga de Professor Titular.

O Memorial apresentado por Suely foi divido em quatro partes distintas embora profundamente interligadas: Formacao Academica, Trajetoria Academica, Gestao Academica e Projeto Academico. Em cada um desses eixos procuro evidenciar minha insercao na vida academica e nos contextos institucional e historico, mostrando os campos de possibilidades que vao sendo construidos, as relacoes que vou tecendo, as escolhas que vou fazendo e as suas implicacoes na minha trajetoria academica.

Para este artigo, em numero de paginas delimitadas, fundi os dois primeiros em apenas um eixo, menos para destacar os aspectos datados e mais para publicizar sua forma de compreender como esses fatos singulares se articulam e ganham significado em um projeto que tem indiscutivelmente sua marca individual, mas que, contextualizada historicamente, tem tambem uma perspectiva coletiva.

Formacao e Trajetoria Academica

Segundo Suely: minha trajetoria academica foi sendo construida gradualmente, num entrecruzamento de tempos distintos: um tempo de buscas, conflitos, descobertas, desenredos; um tempo de afirmacao de projetos, de um estilo profissional inquieto, de alargamento de fronteiras, de rupturas e de construcao de pontes. Sao temporalidades que se conjugam, se encontram, por vezes, se opoem e, nao raro, se sobrepoem. Nao falo de um tempo linear, mas de percursos que tem me permitido maturar uma concepcao de mundo e construir lugares: profissional, academico e politico.

Para Suely um dos aspectos mais importantes a destacar refere-se ao fato de que boa parte de sua formacao inicial ocorreu em condicoes historicas extremamente adversas--dos 17 anos cursados de educacao basica e educacao superior, 15 o foram durante a ditadura militar, o que, seguramente, representou perdas imensuraveis. A reflexao sobre a minha formacao academica nao pode prescindir, portanto, de uma referencia a geracao pos-68, entendendo geracao a partir de vivencias de acontecimentos comuns, ou seja, da insercao do sujeito na historia, e nao, simplesmente, com base em criterio etario. Tendo por referencia Karl Mannheim, como tambem as contribuicoes de Jean-Pierre Azema, Alzira Alves de Abreu destaca que: "Cada geracao se define por um acontecimento ou uma serie de acontecimentos que tem um carater unico e fundador, acontecimentos que estruturam uma epoca, que dao aos que a viveram uma representacao mental e determinam comportamentos especificos, praticas politicas, sociais e culturais. Um acontecimento atinge todos os individuos, logo todas as geracoes, mas a forma e a intensidade serao diferenciadas em relacao a cada individuo" (2). Pretendo, assim, refletir sobre como, integrando uma juventude que se constituiu e se reconheceu como tal, no quadro do terrorismo de Estado intensificado nos anos de chumbo, a minha formacao academica foi se processando. Isto e, trata-se de mapear brevemente as condicoes historicas que constituiram o solo a partir do qual o meu projeto profissional foi se delineando, a minha concepcao de mundo foi se forjando e as minhas relacoes foram se constituindo. Longe de uma visao determinista, quero mostrar o campo de possibilidades que fui identificando e como as minhas escolhas foram se efetivando. Ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em marco de 1974, para cursar Servico Social, minha primeira opcao no vestibular unificado. (...) a decisao foi tomada, na verdade, de forma bem intuitiva, mas, provavelmente, nao aleatoria. Creio que havia um sentimento difuso de sede de justica e de intencao de concretizar um engajamento com as classes populares. Penso que tive, efetivamente, uma forte socializacao com base em principios cristaos e, ademais, segundo a perspectiva hegemonica de genero. Nada melhor, portanto, do que uma escolha profissional que mesclasse educacao, assistencia e intencao de justica. Minha graduacao foi toda realizada durante o Governo do Presidente Ernesto Geisel. Apesar do "projeto liberalizante" anunciado por Geisel e do seu propalado projeto politico de "distensao lenta, gradual e segura", num quadro de esgotamento do "milagre brasileiro", e de sinais de resistencia que iam se mostrando, inclusive, em processos institucionais, como nos embates legislativos de 1974, os orgaos de seguranca continuaram atuando intensamente, reprimindo as organizacoes clandestinas, com a realizacao de centenas de prisoes, assim como denuncias de desaparecimentos e assassinatos de mais de duas dezenas de militantes politicos nos dois primeiros anos de governo. No ultimo ano do curso, o "Pacote de Abril" foi lancado, levando ao recesso do Congresso, a extensao da "Lei Falcao", que censurava o debate politico-eleitoral, a decretacao da reforma do Judiciario, a ampliacao do mandato presidencial para seis anos, dentre outras medidas. A retirada da censura previa a orgaos da grande imprensa, como o Estado de Sao Paulo, dois anos antes, e, posteriormente, da imprensa alternativa, como o Opiniao, o Pasquim e o Movimento, permitia acompanhar mais atentamente o movimento de resistencia que ia se intensificando e as lutas que iam sendo travadas, sobretudo pela anistia, no ambito da sociedade civil. Quando cursei Servico Social, a universidade vivia a tensao entre esse enorme aparato de repressao e a retomada da organizacao do movimento estudantil, embora de forma ainda bastante embrionaria. Na Universidade de Brasilia (UnB), ocorreram os maiores confrontos, tendo sido o campus universitario ocupado por tropas militares, a pedido do Reitor. Esse processo de reorganizacao foi ganhando maior vitalidade em 1976 e se fortalecendo em 1977. Participei, na UFRJ, das...

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