Recusa de cuidados paliativos por familiares: entre o costume e a legalidade

AutorLuciana Dadalto
Páginas265-280
RECUSA DE CUIDADOS PALIATIVOS
POR FAMILIARES: ENTRE O COSTUME
E A LEGALIDADE
Luciana Dadalto
Doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG. Mestre em
Direito Privado pela PUCMinas. Advogada com atuação exclusiva em Direito Médico
e da Saúde. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva.
Administradora do portal www.testamentovital.com.br.
“Nossas vitórias sobre a doença e a morte são
sempre temporárias, mas a nossa necessidade de
apoio e cuidado diante delas são sempre
permanentes.”1
Sumário: 1. Considerações iniciais: o estigma dos cuidados paliativos. 2. O papel da família
nos cuidados paliativos. 3. Recusa de cuidados paliativos por representantes legais. 4. A
representação voluntária como única possibilidade. 5. Recusa de cuidados paliativos por
familiares. 6. Considerações nais. 7. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS: O ESTIGMA DOS CUIDADOS PALIATIVOS
O acesso aos Cuidados Paliativos (CP) é reconhecido pela Organização Mundial de
Saúde como uma emergência mundial. A World Hospice and Palliative Care Association2
estima que 56.8 milhões de pessoas precisam de CP a cada ano, sendo 25.7 milhões no
f‌inal da vida e que 76% dessas pessoas vivem em países em desenvolvimento.
De acordo com a Academia Nacional de Cuidados Paliativos3, apenas 5% dos hospi-
tais brasileiros com mais de cinquenta leitos disponibilizam uma equipe de CP, enquanto
que nos Estados Unidos o percentual é de 90%. O acesso aos CP no Brasil é, portanto,
uma exceção e um problema de saúde pública.
Cuidados paliativos é a denominação mais utilizada nas ciências da saúde para se
referir aos cuidados com o paciente que objetivam melhorar a qualidade de vida desse e
de sua família diante de uma doença ameaçadora da vida.
1. CALLAHAN, Daniel. What kind of life: the limits of medical progress. Washington, D.C.: Georgetown University
Press. 1990.
2. WORLD HOSPICE AND PALLIATIVE CARE ASSOCIATION. Global Atlas of Palliative Care. 2. ed. Disponível
em: http://www.thewhpca.org/resources/global-atlas-on-end-of-life-care. Acesso em: 20 fev. 2021.
3. ACADEMIA NACIONAL DE CUIDADOS PALIATIVOS. Atlas dos Cuidados Paliativos 2019 Brasil. Disponível em:
https://api-wordpress.paliativo.org.br/wp-content/uploads/2020/05/ATLAS_2019_f‌inal_compressed.pdf. Acesso
em: 20 fev.2021.
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LUCIANA DADALTO
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Segundo Mccoughlan4, “os cuidados paliativos modernos, também conhecidos
como hospice, têm seu início histórico nos tempos antigos”. Surgiram na Europa medie-
val e estavam vinculados ao trabalho religioso e, com o desenvolvimento dos hospitais,
foram relegados a segundo plano.
Gonçalves5 af‌irma que a etimologia da palavra hospital vem do latim hospes, termo
usado para as casas de assistência que abrigavam pobres, peregrinos e doentes na Idade
Média. Atualmente, o termo hospital é utilizado como sinônimo de nosocomium, pala-
vra grega que signif‌ica tratar os doentes. Há uma grande divergência entre autores que
pesquisam o surgimento dos hospitais, pois uma parte deles remonta seu surgimento à
época pré-cristã e outra à época pós-cristã.
Amaral e Campos6 af‌irmam que a partir do século XVIII os hospitais deixam de ser
hospedarias com condições insalubres e passam adquirir aspecto e estrutura semelhan-
te aos que existem na atualidade. A descoberta da transmissão dos germes em 1860, a
incorporação dos procedimentos cirúrgicos aos hospitais e o surgimento da medicina
científ‌ica no século XIX, somados ao desenvolvimento tecnológico do século XX produ-
ziram a setorização no ambiente hospitalar, possibilitando que enfermos com diferentes
patologias fossem tratados em um mesmo espaço físico.
Esse ambiente possibilitou o controle das doenças no ambiente hospitalar e também
gerou o surgimento da gestão desses espaços, com a f‌inalidade de evitar que as doenças
se espalhassem para além dos hospitais. Nesse contexto, Focault7 af‌irma que o hospi-
tal passa a ser visto como um instrumento de cura e o médico passa a ser o principal
responsável pela organização hospitalar. Castelar8 entende que a f‌inalidade atual dos
hospitais se relaciona a uma maior resolução da doença, otimizando os procedimentos
de diagnóstico e terapêutica para reduzir a permanência do paciente, uma vez que com
o avanço tecnológico longas internações se tornam muito dispendiosas.
Assim, os hospitais no século XX são vistos como locais para a prática de trata-
mentos curativos, aqueles que tiram a patologia e devolvem a normalidade ao doente.
Neste ambiente, os pacientes com doenças irreversíveis e/ou terminais eram tidos como
símbolo de impotência médica, vez que a cura era impossível.
Foi a partir dessa realidade que Cicely Saunders interessou-se pelo cuidado
desses pacientes e criou em 1967, em Londres, a primeira instituição especializada,
St. Christopher Hospice, na qual o foco era cuidar da dor física, social, espiritual e
emocional do paciente, ao que ela chama de dor total9, compreendendo que a Me-
4. MCCOUGHLAN, Marie. A necessidade de cuidados paliativos. In: BERTACHINI, Luciana; PESSINI, Leo.
Humanização e cuidados paliativos. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 168.
5. GONÇALVES, Ernesto Lima. Estrutura organização do hospital moderno. RAE – Revista de Administração de
Empresas. São Paulo, v. 38, n. 1, p. 80-90, Jan./Mar. 1998.
6. AMARAL, Márcia Aparecida do; CAMPOS, Gastão Wagner de Souza. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão
democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Ciência e Saúde
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, p. 849-859. 2007.
7. FOUCALT, Michael. Microfísica do poder. São Paulo, Paz e Terra, 2014.
8. CASTELAR, R.M. O hospital no Brasil. In: CASTELAR, MODELET& GRABOIS: Gestão hospitalar: um desaf‌io
para o hospital brasileiro. Brasil/França, Ed. ENSP, 1995.
9. SAUNDERS, Cicely. Into the valley of the shadow of death: A personal therapeutic journey. British Medical Journal,
1996; 313:1599-1601.
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