Redução de danos e sua potencialidade como ferramenta antirracista na atenção psicossocial

AutorJúlio César Paiva e Silva - Lucia Cristina dos Santos Rosa
CargoGraduando em Serviço Social da Universidade Federal do Piauí - Assistente Social
Páginas720-737
REDUÇÃO DE DANOS E SUA POTENCIALIDADE COMO FERRAMENTA ANTIRRACISTA NA
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Júlio César Paiva e Silva1
Lucia Cristina dos Santos Rosa2
Resumo
Este ensaio reconstitui as imbric ações da gênese da política sobre drogas no País com as ações racistas, associadas às
políticas eugenistas e higienistas, tend o por alvo os segmentos negros, cujos padrões de consumo de substâncias
psicoativas tenderam a ser remetidas para o campo jurídico ou médico, pautados no paradigma proibicionista, que se torna
hegemônico. Tal modelo é tencionado, a partir dos anos 2000, pela redução de danos, baseada nos direitos humanos e na
participação dos usuários do Sistema Único de Saúde, que visibiliza o racismo em suas variadas matizes e sinaliza para a
desconstrução do imaginário dominante. Contribui, assim, para densas inflexões epistemológicas, jurídicas, éti co-política e
assistenciais nas abordagen s aos consumidores de substâncias psicoativas, o que a torna potencialmente uma ferramenta
antirracista.
Palavras-chave: Redução de danos. Racismo. Antirracismo.
DAMAGE REDUCTION AND ITS POTENTIAL AS AN ANTI-RACI ST TOOL IN PSYCHOSOCIAL CARE
Abstract
This essay reconstructs how the genesis of drug pol icy in the countr y overlaps with racist actions, associated with eugenic
and hygienist policies, targeting the black segments, patterns of consumption of psychoactive substances tended to be
referred to the legal or medical field, based on in the prohibitionist paradigm, which becomes hegemonic. From the 2000s
onwards, this model is intended f or harm reduction, based on human rights and on the participation of users of the Unified
Health System, which makes racism visible in its various hues and signals the deconstruction of the dominant imagination.
Thus, it contributes to dense epistemological, legal, ethical-political and assistance inflections in the approaches to
psychoactive substance consumers, which potentially makes it an anti-racist tool .
Keywords: Harmreduction. Racism. Anti-racism.
Artigo recebido em: 08/07/2021 Aprovado em: 26/11/2021
DOI: http://dx.doi.org/10.18764/2178-2865.v25n2p720-737
1 Graduando em Serviço Social da Universidade Federal do Piauí, bolsista no Programa de Educação Tutorial - PET Serviço
Social no GT problematizando relações sociais: questões étnico-raciais. E-mail: juliomcps@gmail.com
2 Assistente Social. Doutora e m Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do
Piauí – UFPI. E-mail: luciacsrosa@gmail.com
Júlio César Paiva e Silva e Lucia Cristina dos Santos Rosa
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1 INTRODUÇÃO
A questão étnico-racial atravessa todas as relações sociais no Brasil, uma vez que a
sociedade brasileira foi construída através da dominação racial de um grupo sobre outros e
fundamentada na ideia de superioridade racial branca. Logo, a Questão étnico-racial apresenta-se
como determinação essencial para apreender concretamente a Questão Social e suas múltiplas
expressões (MARTINS et. al, 2020), sendo denominada por Gonçalves (2018) como o “nó da Questão
Social”, o que é reforçado na compreensão de Oliveira (2017, p.108), sobre o racismo como “uma
dinâmica estrutural, pois está diretamente vinculado à configuração da sociedade de classes no Brasil”,
haja vista a exclusão dos negros da sociedade assalariada e o consenso de que a pobreza no País tem
cor, a preta.
Apesar da universalidade do SUS, é perceptível a presença majoritária de pobres e
negroscomo usuários dos serviços públicos de saúde (BARATA, 2008), então é inegável que a
Questão Social e a Questão étnico-racial perpassam o cotidiano e as práticas institucionais nos
serviços de saúde, influenciando no acesso e na assistência prestados, até porque os negros como
profissionais de saúde tendem a ocupar cargos subalternizados, sendo significativamente presente no
corpo de enfermagem e limpeza.
As reivindicações da população negra por melhor acesso ao sistema de saúde ocorrem
desde o período pós-abolição, e um dos resultados dessa luta foi a instituição da Política Nacional da
Saúde da População Negra, em 2009, reconhecendo o racismo, e principalmente o racismo
institucional, ou seja, barreiras/desvantagens no acesso e usufruto de serviços expressas em
discriminação baseadas na cor/raça, como um dos principais fatores na produção das iniquidades em
saúde pela população negra (WERNECK, 2016). Apesar da secundarização ou invisibilização da
discussão sobre racismo e saúde mental no movimento antimanicomial brasileiro, nos espaços sócio-
ocupacionais e na academia, o racismo é um fenômeno histórico e estrutural, sendo “um dos modos
pelo qual o Estado e as demais instituições estendem o seu poder sobre toda a sociedade,” (ALMEIDA,
2019, p.45), materializando-se no cotidiano das instituições que implementam as políticas públicas
sociais, a partir do que interfere nas condições de vida de seus usuários.
A atenção voltada às pessoas consumidoras de substâncias psicoativas desde sua
gênese no Brasil, baseada no proibicionismo (GUIMARÃES; ROSA, 2020), foi fundamentada na moral
e no racismo, o que provocou a objetificação dos sujeitos e a culpabilização pelas situações de
vulnerabilidades. Nesse cenário, os consumidores de SPA sofreram as violências do modelo
manicomial e do paradigma proibicionista através da Política de Saúde e de Segurança pública, onde
ambas serviam como sistemas de controle e manutenção da ordem capitalista. Dessa forma,

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