O Reexame das Decisões Judiciais ao Longo dos Tempos

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Ocupação do AutorAdvogado
Páginas31-47

Page 31

1. Escorço histórico

A aptidão para formular juízos de valor a respeito das coisas do mundo sensível em geral constitui, sem dúvida, um dos mais significativos predicados da racionalidade humana; daí por que o notável filósofo René Descartes — fundador do moderno racionalismo (penso, logo existo) — pôde afirmar, com inegável acerto, que “o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom-senso ou a razão, é igual, por natureza, em todos os homens”1.

Esse atributo, todavia, adquire extraordinária importância quando, ajustado à óptica do ordenamento jurídico em vigor, é utilizado na apreciação dos próprios atos humanos, ou dos fatos da vida em sociedade — pois se sabe que o homem, a partir de certo momento de sua história, tornou-se julgador dos seus semelhantes, na ordem terrena, seja para reconhecer-lhes a existência de um direito; seja para compeli-los a respeitar a esfera jurídica alheia, seja para o que mais fosse necessário ou conveniente.

Pode-se sustentar, por isso, que o homem, a par de reconhecidamente gregário, é também um ente capaz de julgar.

As fontes revelam, a propósito, que no curso da História a figura do julgador precedeu, em muito, à do legislador2; com efeito, o ofício de julgar, bem antes da existência da judicatura de natureza institucional, foi cometido aos sacerdotes (cujas decisões supunham-se consoantes com o desejo das divindades) ou aos anciãos (que eram, pela longa vivência, profundos conhecedores dos costumes do grupamento social a que os indivíduos em conflito se achavam integrados). Só mais tarde foi que o Estado avocou, em caráter monopolístico e como medida tendente a preservar a estabilidade das relações sociais, o encargo de compor heteronomamente as lides, instituindo, para essa finalidade, um poder específico: o Judiciário.

A falibilidade, contudo, sempre se fez inerente à natureza humana; sendo assim, a possibilidade de haver equívoco ou qualquer outra erronia (involuntária, ou não) nas decisões proferidas pelos julgadores logo afiorou à consciência de todos, e, em particular, do legislador, como algo tão natural e inevitável quanto o próprio ato de pensar. Também não se perdeu de vista a circunstância de alguns julgamentos serem até mesmo suscetíveis

Page 32

de sofrer fortes infiuências de fatores subjetivos, como a emoção, ou de certas injunções externas, como, v. g., as pressões do poder constituído, da Igreja, a ingerência das classes dominantes, os interesses de grupos etc.

Parece-nos razoável reconhecer nessa espécie de consciência de falibilidade das decisões humanas a causa essencial e remota de haver-se permitido — e em alguns casos tornado obrigatório — o reexame dos pronunciamentos jurisdicionais por órgão, em regra, hierarquicamente superior. Do ponto de vista eminentemente objetivo, todavia, não há negar que essa revisão dos julgamentos surgiu para atender aos inomitíveis imperativos de justiça e de credibilidade das resoluções judiciais, como forma de preservar a própria paz social. Os jusnaturalistas, porém, sustentam que os recursos decorrem do direito natural; dentre eles, citamos Gouvea Pinto. Não concordamos, data venia, com esse entendimento. Pode-se dizer que o anseio de justiça seja algo que se relacione com o direito natural; não há, todavia, como vislumbrar nesse direito o fundamento do instituto recursal, uma vez que — embora infrequente — há casos em que uma sentença justa é substituída por um acórdão injusto, conforme já advertia Ulpiano.

Seria inescusável omitir, por outro lado, que esse revisionamento teve, em deter-minadas épocas, um escopo marcadamente político, bastando lembrar a atuação dos Príncipes, no século XV, que, ao se tornarem antifeudais, passaram a empenhar-se, com denodo, na centralização — e no consequente monopólio — da atividade legislativa e da administração da justiça, como estratagema sutil para provocar o enfraquecimento dos feudos. Tal fato levou Glasson e Tissier a afirmarem, com razão, que “l’histoire du droit d’appel est étroitement mêlée à l’histoire des progress du pouvouir royal” (Traité Théorique et Pratique d’Organisation Judiciaire de Compétence et de Procédure Civile, vol. I, p. 81). Em tradução livre: “A história do direito de apelação está estreitamente ligada ao progresso do poder real”.

Nesse quadro de prepotência e de despotismo, avultava-se, como uma espécie de senhor da justiça, a figura do rei; qualquer julgamento somente poderia ser realizado por ele, ou mediante sua delegação de poderes. Ao monarca ficava reservado, em qualquer hipótese, o direito de rever as decisões prolatadas por seus prepostos; essa prerrogativa o fazia, à evidência, todo poderoso diante dos senhores feudais, dos suseranos, e, em sentido mais amplo, dos reinóis em geral.

Vale ser mencionado, como espelho fiel e expressivo desse período, o § 1.º do Título V, Livro III, das Ordenações Filipinas, que estatuía: “Porém, nós poderemos mandar em todo caso por simples petição trazer perante nós per nosso especial mandado qualquer feito, ainda que seja da almotaceria, quando houvermos por nosso serviço, porque assim foi usado pelos Reis, que ante nós foram”. A almotaceria era um tribunal antigo, presidido por um almotacel, cuja competência era para taxar, avaliar e fixar os preços dos gêneros alimentícios, ao qual igualmente se atribuía o encargo de cuidar da exatidão dos pesos e medidas (do árabe: Al muhtaçaib = mestre de aferição).

A reapreciação dos julgados, entretanto, não data do período reinol, como se possa supor; em verdade, é quase tão antiga quanto o próprio direito material dos povos, a despeito de não se poder cogitar, em rigor, nos albores da civilização humana, da figura do recurso, conforme a posição que esse salutar instituto ocupa no quadro da moderna

Page 33

ciência processual. De qualquer maneira, como pondera Alcides de Mendonça Lima, o que importa, efetivamente, é “estabelecer, nas fontes históricas, que, em essência, a ideia de recurso se acha arraigada no espírito humano, como uma tendência inata e irresistível, como uma decorrência lógica do próprio sentimento de salvaguarda a um direito, já ameaçado ou violado em uma decisão” (Introdução aos Recursos Cíveis. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. p. 3).

Dessa linha de entendimento não discrepa Othon Sidou, para quem “A reanálise das apreciações destinadas a fazer justiça há de perder-se, pois, na aurora da vida cole-tiva, conferindo aos recursos, sentido lato, a mais natural contemporaneidade com as sentenças, o que vale dizer, nasceu com o direito” (Os Recursos Processuais na História do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 1). Observa com propriedade Mattirolo: “Se per ‘appello’ s’intende ‘in genere’ il mezzo di chiedere e di ottenere la riparazione di una sentenza ingiusta, ben si puó dire che esso è coavo alle più remotte civilitá; perchè in tutti i tempi si è sentido il bisogno di protestare contro una sentenza ingiusta, ed al bisogno si è provveduto com mezzi conformi alle idee ed alle condizioni dei tempi” (Trattato di Diritto Giudiziario Civile Italiano. vol. IV, p. 404, apud BERMUDES, Sergio. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. p. 14).

Estabelecidas essas considerações, convém efetuarmos, a seguir, a título de ilustração, um escorço histórico das principais legislações que dispuseram, segundo as suas peculiaridades, sobre a impugnação das decisões inferiores, cujos meios se foram aprimorando na sequência dos séculos, e mesmo dos milênios, até atingirem o atual estádio dos recursos.

1.1. Babilônia

Mandado elaborar pelo fundador da dinastia amorita, entre os anos 2123 a 2080, antes de Cristo, o Código de Hammurabi constitui, até onde sabemos, o mais antigo texto legislativo conhecido pelo homem. Trata-se de um monólito insculpido em uma estela de diorito, medindo 2,25 metros de altura, por 1,90 de circunferência, na base, que atualmente está a enriquecer o acervo do famoso museu do Louvre, em Paris. Nele, segundo Jayme de Altavila (Origem dos Direitos dos Povos. 3.a ed., São Paulo: Melhoramentos, 1963. p. 29), ressalta a figura de Schamasch, o Deus-Sol, atribuindo à juventude e à capacidade de Hammurabi (também denominado Khamu-Rabi, de origem árabe) a codificação que remonta a milênios.

Conforme demonstram as suas disposições, os juízes eram nomeados pelo próprio rei, admitindo-se, inclusive, a revogação das suas sentenças, não sem graves consequências morais para o julgador que as houvesse proferido; sem embargo, estava expresso no art. 5.º desse vetusto Código que, “Se um juiz dirige um processo e profere decisão e redige por escrito a sentença, se mais tarde o processo denota erro e aquele juiz, no processo que dirigiu, é convencido de ser causa do erro, ele então deve pagar doze vezes a pena que era estabelecida no processo e se deverá publicamente expulsá-lo de sua cadeira de juiz” (reconstituição do texto efetuado por Bonfante, apud Othon Sidou, obra cit., p. 9).

Como se percebe, essa penalidade infamante, que o Código de Hammurabi infligia ao juiz que incidisse em erro (e reconhecesse, mais tarde, que lhe havia dado causa),

Page 34

decorria do fato manifesto de se haver feito, em atitude insensata, tábua rasa do truísmo da falibilidade humana, sobre a qual estivemos a discorrer há instantes.

A punição violenta aos julgadores pode mesmo ser apontada como uma das características de certas legislações priscas, como é o caso da pérsica; com apoio nela, Cambises mandou que se esfolasse vivo um juiz considerado corrupto, tendo a sua pele sido utilizada para estofar a cadeira do litigante prejudicado por ele. Como se não bastasse, o filho deste foi designado para exercer as...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT