Duas reflexões sobre o contrato de agência: identidade/ distinções pertinentes e critérios próprios na aplicação da regra da razão antitruste

AutorJosé Inacio Ferraz de Almeida Prado Filho
Páginas199-219

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I - Circulação e contratos da distribuição

Como bem argumentado por Fran-cesco Carnelutti, a atividade econômica de produção de bens e de distribuição da riqueza atingiria apenas a sua medida mínima de seu benefício sem a atividade de circulação: de um lado, não seria possível a divisão do trabalho, já que ninguém se especializa na produção de um único bem se não puder trocar o seu excedente por outras mercadorias de que precisa; de outro lado, somente pela circulação os bens se distribuem segundo as necessidades das pessoas, transferindo-se por trocas sucessivas até chegarem àqueles que mais os valorizam.1

O maior obstáculo à circulação dos bens está em procurar a coincidência entre duas situações: a de quem tem menos do que o necessário de um determinado bem para satisfazer suas necessidades, e a de quem tem mais do que o necessário desse mesmo bem. O meio econômico por que se conectam essas duas situações, segundo Carnelutti, pode ser subjetivo (i.e., o comerciante, cuja função é de típico intermediário na circulação do bem) ou ob-jetivo (i.e., a moeda, que funciona como denominador comum e um termo intermediário entre dois bens a serem trocados). A interposição do comerciante e da moeda converte uma troca difícil de ser obtida (mercadoria por mercadoria, entre os titulares de dois bens diferentes), em duas trocas sucessivas que podem ser obtidas com maior facilidade (mercadoria por dinheiro, e dinheiro por outra mercadoria, seja entre o comerciante e os titulares de dois bens distintos, seja entre três titulares de bens distintos).2

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O agente detém posição semelhante àquela descrita por Carnelutti sobre o comerciante: sua função é auxiliar o produtor, que tem mais do que o necessário para atender às suas necessidades da mercadoria produzida, para que ele possa atingir os seus consumidores, que têm menos do que o necessário. O agente desempenha esse papel por meio de uma atividade de promoção dos negócios do proponente, em uma determinada área, mediante remuneração (cf. art. 710 do Código Civil, a definir o contrato de agência).

Essa finalidade típica do contrato de agência permite reconduzi-lo a um gênero mais amplo, nomeado pela doutrina italiana como "contratos da distribuição", cuja função econômica é organizar e tratar o comércio dos produtos de um fabricante em um dado território, categoria econômica que envolve os contratos de distribuição, franquia, agência, comissão e outros que viabilizam o escoamento da produção em direção ao mercado, de modo a atender ao demandado.3 Ainda que a função conspícua dos contratos em geral seja atuar juridicamente a circulação dos bens (daí Carnelutti defini-los como os instrumentos jurídicos da circulação),4 esse con-junto de contratos da distribuição tem as particularidades de encontrarem, na própria atividade de circulação, seu objetivo primário e típico, e de permitirem ao produtor algum grau de planejamento e ordenação da forma como seus produtos serão oferecidos em mercado.5

A figura jurídica da agência ganhou impulso após as transformações da Revolução Industrial, que estabeleceram a necessidade de uma atividade de colaboração estável, contínua e coordenada para a distribuição dos produtos, e que, a partir da segunda metade do século XIX, vieram a estabelecer um elo orgânico de conjugação entre a produção industrial de massa e os consumidores finais, com o surgimento da figura do agente de comércio.6 Surgidas as indústrias, o desenvolvimento do comércio daí resultante exigiu novos processos de intermediação para atender à expansão do mercado interno, tendo a mediação se

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imposto como atividade auxiliar e independente das empresas industriais e atacadistas, que se valiam desses auxiliares para atingir a sua clientela de forma mais funcional e econômica.7 Mas antes de discutir as questões e problemas específicos do contrato e agência, convém distingui-lo do conceito de agency empregado nos países de common law.

II - Relações do tipo agente principal na "common law"

Nos países de common law, o conceito de agency é empregado em uma ampla gama de situações, constituindo um dos pilares de sustentação deste sistema jurídico.8 Para uma ideia da importância que esse conceito desempenha nos sistemas jurídicos de raiz anglo-saxônica, quando o American Law Institute começou a compilar seus influentes resumos da common law, conhecidos como Restatements ofthe Law, o documento que tratou da relação de agency foi o segundo a ser produzido, logo após o que tratou dos contratos.9

Como se pode ler no § 1.01 do Resta-tement (third) of Agency, a relação agente principal está muito ligada à noção de representação, com seu conteúdo acrescido por elementos de confiança e de direção pelo representado (dito principal).10 A geração de relações jurídicas envolvendo diretamente o principal, advindas das ati-vidades do agente, foi estabelecida nos §§ 6.01, 6.02 e 6.03 do Restatement (third) of Agency, que determinam a participação necessária do principal em contratos gerados por agentes ditos "revelados", e sua participação natural em contratos gerados por agentes ditos "não revelados".11

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As particularidades deste tipo de relação ficam mais claras em uma avaliação dos deveres atribuídos ao agente pelo Res-tatement (third) ofAgency. Foi estabelecido um princípio geral fiduciário, devendo o agente atuar lealmente para o benefício do principal, em todos os assuntos relacionados à relação de agency (cf. § 8.01); estabeleceram-se também diversos deveres específicos de lealdade: (i) não adquirir benefícios materiais de terceiros por conta de negociações ou ações adotadas em nome do principal, ou mesmo por sua posição como agente (cf. § 8.02); (ii) não atuar em conflito formal de interesse com o principal (cf. § 8.03); (iii) durante a relação de agency, não concorrer com o principal ou auxiliar seus competidores, ainda que o agente possa preparar sua entrada como concorrente depois de encerrada a relação (cf. § 8.04); (iv) não usar os bens do principal em benefício próprio ou de terceiros, assim como não comunicar informações confidenciais do principal para uso próprio ou em benefício de terceiros (cf. § 8.05). Em matéria de resultado, o Restatement (third) of Agency também estabelece alguns deveres que reforçam as relações fiduciárias do agente: (i) atuar com cuidado, competência e diligência normalmente exercidos pelos agentes em circunstâncias semelhantes, incluídos na determinação do padrão de cuidado as habilidades e conhecimentos especiais detidas ou apregoadas pelo agente (cf. § 8.08); (ii) agir dentro dos limites de seus poderes, e cumprir com todas as instruções fornecidas pelo principal (cf. § 8.09); (iii) agir de forma razoável e não adotar condutas capazes de lesar a ati-vidade do principal (cf. § 8.10); (iv) transmitir informações ao principal que sejam do interesse do principal, desde que não haja violação de deveres superiores perante terceiros (cf. § 8.11); (v) não negociar com bens do principal como se fossem seus, não promover confusão patrimonial com os bens do principal e prestar contas (cf. §8.12).

Com relação aos deveres do principal, o Restatement (third) ofAgency os estabelece em duas disposições: § 8.14, constituindo o dever de indenizar o agente por pagamentos e prejuízos, e § 8.15, constituindo o dever geral de o principal agir de forma justa e de boa-fé, incluída a revelação de informação ao agente sobre os riscos de danos físicos ou perdas pecuniárias porventura conhecidos.

Em suma, o emprego do conceito de agency na common law é muito mais amplo do que a relação estrita de distribuição de bens; ainda que nada pareça impedir sua utilização com a finalidade de auxiliar a circulação de bens, a relação formalizada desta maneira virá acrescida de toda a fidú-cia própria desta figura.

III - Contratos de agência e de distribuição
  1. Definição e distinções: agência, representação comercial e distribuição

    Ao teor do art. 710 do Código Civil, o contrato de agência consiste no exercício da atividade de promoção de negócios de terceiros (i.e., a obrigação de promover negócios em caráter não eventual) havida sem dependência e mediante remuneração específica, em zona determinada. Pode o proponente conferir ou não poderes para que o agente o represente na conclusão do negócio, caso em que existirá também contrato de mandato; a relação a ser constituída sempre opõe o proponente e o consumidor: o agente não é parte do negócio, mas apenas aproxima os contratantes, podendo representar uma das partes, se detiver poderes específicos para tanto.

    Aqui já se distingue o contrato de agência dos contratos de comissão (arts. 693-709 do Código Civil) e do contrato es-timatório (arts. 534-537, do Código Civil),

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    já que tanto o comissário quanto o consignatário negociam mercadoria que não lhes pertence em seu próprio nome, mas no interesse do comitente/consignante; o agente apenas aproxima as partes para contratarem e, mesmo quando intervém, conclui o contrato em nome do proponente. A agência também se distingue da corretagem (arts. 722-729 do Código Civil) porque tem na habitualidade e estabilidade elementos essenciais de suafattispecie; admite-se a corretagem para atos isolados, mas a agência é, necessariamente, uma atividade.12 Além disso, o corretor coloca-se em uma posição de imparcialidade entre as partes do negócio, enquanto o agente é sempre ligado a uma das partes.1314

    Grande discussão existe sobre a identidade ou não entre os contratos de agência e os de representação comercial autônoma, disciplinados pela Lei n. 4.886/1965, especialmente diante da semelhança de redação entre o art. 710 do Código Civil e o art. 1° da Lei n. 4.886/1965.

    Parte da doutrina identifica as duas figuras como idênticas. Paula Forgioni ressalta...

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