Reflexões sobre a política habitacional: estado e conflitos de classes

AutorAngela Michele Suave, Lindamar Alves Faermann
CargoUniversidade de Taubaté, Programa de Mestrado em Desenvolvimento Humano, Departamento de Serviço Social, Taubaté, SP, Brasil - Universidade de Taubaté, Departamento de Serviço Social, Taubaté, SP, Brasil
Páginas266-275

Page 266

266 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-02592020v23n2p266

ESPAÇO TEMÁTICO: DIREITOS HUMANOS, DEMOCRACIA E NEOCONSERVADORISMO

Reflexões sobre a política habitacional: estado e conflitos de classes

Lindamar Alves Faermann2 https://orcid.org/0000-0002-1622-6202

1 Universidade de Taubaté, Programa de Mestrado em Desenvolvimento Humano, Departamento de Serviço Social, Taubaté, SP, Brasil ² Universidade de Taubaté, Departamento de Serviço Social, Taubaté, SP, Brasil

Reflexões sobre a política habitacional: estado e conflitos de classes

Resumo: O presente artigo tem como objetivo evidenciar os traços presentes na política habitacional no contexto dos governos petistas e seus influxos na vida dos trabalhadores, assim como as regressões atuais nesse setor no governo Bolsonaro, tendo como centralidade para essa análise a crise mundial do capital e suas particularidades contemporâneas, o papel do Estado na sociedade burguesa e os conflitos de classes. Para tal, considerou-se o contexto brasileiro de ofensiva ultraliberal e conservadora expresso nas contrarreformas das políticas e das ações governamentais reacionárias. Do ponto de vista metodológico, foi usada a pesquisa bibliográfica para elucidar a questão debatida. Como resultado relevante, constatou-se a importância da organização sociopolítica dos trabalhadores que, por meio dos movimentos sociais e de suas lutas cotidianas, imprimem forças para o acesso aos seus direitos, notadamente o da moradia. Nessa direção, foi essencial discutir o direito à cidade nas relações contraditórias da sociedade capitalista e os limites da democracia. Palavras-chave: Política habitacional. Conflitos de classe. Direito à cidade. Estado. Crise capitalista.

Reflections about housing policy: state and class conflicts

Abstract: This article aims to highlight the features present in housing policy in the context of PT governments and their influence on the workers lives as well as the current returns in this sector under the Bolsonaro government, having as centrality for this analysis the global crisis of capital and its contemporary peculiarities, the role of the State in bourgeois society and class conflicts. To this end, it was consider the Brazilian context of ultraliberal and conservative offensive expressed in the government reactionary counter-reforms, policies and actions. From methodological point of view was used the bibliographical research to clarify a debated issue. As a relevant result, the importance of the socio-political organization of workers was found, which, through social movements and their daily struggles, impress forces for access to their rights, notably that of housing. In this direction, it was essential to discuss the right to the city in the contradictory relations of capitalist society and the limits of democracy.

Keywords: Housing policy. Class conflicts. Right to the city. State. Capitalist crisis.

Recebido em 31.10.2019. Aprovado em 11.02.2019 . Revisado em 31.03.2019

© O(s) Autor(es). 2020 Acesso Aberto Esta obra está licenciada sob os termos da Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional (https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/deed.pt_BR), que permite copiar, distribuir e reproduzir em qualquer meio, bem como adaptar, transformar e criar a partir deste material, desde que para fins não comerciais e que você forneça o devido crédito aos autores e a fonte, insira um link para a Licença Creative Commons e indique se mudanças foram feitas.

R. Katál., Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 266-275, maio/ago. 2020 ISSN 1982-0259

Angela Michele Suave1https://orcid.org/0000-0002-2927-3438

Page 267

267

Reflexões sobre a política habitacional: estado e conflitos de classes

Introdução

Este artigo traz reflexões sobre a política habitacional no contexto dos governos petistas (2003-2016) e elucida as particularidades de suas gestões, bem como algumas medidas regressivas adotadas pelo atual governo Bolsonaro (2019) no tocante a essa política.

Para essa discussão foi necessário contextualizar a crise mundial do capital, aproximando-se de seus traços contemporâneos e demarcando o papel do Estado no que toca à manutenção dos interesses burgueses e aos conflitos de classes, decorrentes das desigualdades que compõem a sociedade capitalista e que atravessam o cotidiano de vida dos trabalhadores. Assim, diante da reiterada violação dos direitos sociais no Brasil e nesta discussão em especial, do direito à moradia e, de forma mais abrangente, do direito à cidade, pontuam-se os limites da democracia em uma sociedade de classes, cujo acesso a essa necessidade é restringido ou negado, ocasionando os conflitos sociais.

A análise dos conflitos por moradia para a conquista do direito à cidade na atualidade brasileira é fundamental para a compreensão da realidade urbana, pois é nesse espaço que os sujeitos expropriados dos meios de produção constroem a sua trajetória e convivem com os expropriadores. Ainda, é nesse mesmo espaço que se particularizam as relações determinadas pelo sistema capitalista e se institui a luta de classes. Nesse sentido, considerou-se a cidade como um lugar de mediação da produção e reprodução social da sociabilidade humana.

Para a condução deste artigo foi usada a pesquisa bibliográfica com autores clássicos que versam sobre as relações capitalistas, o Estado e a luta social e política dos trabalhadores, como Luxemburgo (2010), Marx (2009) e Trotsky (2004). Para discutir a categoria do direito à cidade, apoiou-se em Lefebvre (2001, 2008), além de recorrer a outros autores contemporâneos que estudam moradia, espaço urbano e democracia sob a perspectiva teórico-metodológica crítica.

Dessa forma, apoiou-se no método dialético para alcançar as relações de totalidade, no sentido de aprofundar as reflexões acerca do objeto pesquisado em suas determinações mais amplas advindas das relações capitalistas. Logo, se considerou as especificidades da sociedade dividida em classes, que tem por base a exploração do trabalho e a propriedade privada, sendo atravessada pelas relações de dominação, alienação, conflitos e resistências.

Fica evidente neste artigo que a resistência e a ação dos trabalhadores se tornaram um problema para os interesses burgueses que buscam ampliar seus lucros e que, nessa fase do capitalismo, não podem mais fazer concessões. Para conter esses conflitos, o Estado cumpre fielmente sua função, pois como bem lembra Mascaro (2013), a forma política estatal é a forma do capital. Por isso, existe para garantir a exploração e a opressão dos trabalhadores, usando, para isso, métodos de conciliação e/ou de violência. Nesses termos, a modulação da democracia cessa no capital.

Diante desse cenário, é necessário resistir por meio dos movimentos sociais, das lutas e dos embates cotidianos para avançar na consciência de classe e impulsionar o direito à cidade por meio da organização social e política dos trabalhadores, pois “mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não” (ALEGRE, 1965).

Política habitacional: faces dos governos petistas e tendências do governo Bolsonaro no contexto da crise do capitalismo contemporâneo

Para uma análise da política habitacional e dos conflitos por moradia para a conquista do direito à cidade, é importante considerar os elementos da crise mundial capitalista, as relações forjadas no capitalismo contemporâneo e as suas incidências na realidade brasileira e no conjunto da vida dos trabalhadores.

Pelo limite textual, resgata-se o período dos governos petistas (2003-2016), que tiveram uma “face progressista” quanto às políticas direcionadas ao conjunto de trabalhadores, e as imposições e as tendências regressivas adotadas no governo Bolsonaro no tocante à política habitacional.

Inicialmente é oportuno evidenciar que, para Lefebvre (2008, p. 13), o direito à cidade é o direito à vida urbana, com a condição de um humanismo e de uma democracia renovada. A compreensão teórica da socie-dade urbana apresentada pelo autor refere-se à sociedade que nasce da industrialização, constituída por um processo que absorve a produção agrícola em um bojo em que “explodem as antigas formas urbanas, herdadas de transformações descontínuas”.

A discussão sobre o direito à cidade provocada pelo autor surge como crítica aos políticos, aos urbanistas e à própria sociedade quanto à alienação ocasionada pelos imperativos de uma urbanização desenfreada e regulatória, objetivando com isso uma reflexão da cidade como espaço de encontro e de simultaneidade. Tal ideia é reforçada por Lefebvre (2001, p. 117) ao afirmar que “o direito à cidade não

R. Katál., Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 266-275, maio/ago. 2020 ISSN 1982-0259

Page 268

268

Angela Michele Suave e Lindamar Alves Faermann

pode ser concebido como um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana transformada, renovada”. Para ele, as ruas da cidade são tomadas pela lógica da mercadoria em benefício do rendimento e do lucro, em que prevalece o valor de troca e não o de uso – este que é débil, alienado e alienante.

A evidência dessa lógica fica explícita nas desocupações atuais dos centros urbanos e na valorização de terrenos em forma de mercadoria, dando lugar ao lucro em detrimento das necessidades sociais e básicas dos sujeitos. A especulação do mercado imobiliário e as possibilidades de lucro sobrepõem-se ao acesso à moradia e à cidade. Dessa forma, as ocupações organizadas por movimentos sociais significam uma força política nas cidades e constituem parte da reprodução das relações, reafirmando a tese de Lefebvre (2008) de que a realidade urbana ultrapassa o campo da distribuição e intervém diretamente na produção e nas relações de produção.

Nesse sentido, entende-se a cidade contemporânea como um espaço de dominação política...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT