Reflexos da Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente nos Dispositivos Processuais do Estatuto da Criançae do Adolescente

AutorAndrea Boari Caraciola; Carlos Augusto de Assis
Páginas419-429

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1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, em adstrição à Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959 e à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança de 1989, imprimem no ordenamento jurídico brasileiro o resultado de longa e severa batalha dos movimentos sociais em prol do reconhecimento dos direitos das crianças e dos adolescentes, de forma a edificar um microssistema em que a sociedade e os Estados brasileiros assumem a responsabilidade constitucional de garantir um futuro digno aos mais jovens.

Ao incorporar e reverberar a doutrina da proteção integral, o Estatuto da Criança e do Adolescente revisitou a questão da infância e da adolescência, lançando um novo olhar sobre problemas sociais recorrentes, colocando-os como prioridade e propondo outro modelo de gerenciamento das políticas públicas adstritas a essa temática social.

Assim é que o Estatuto da Criança e do Adolescente atribui a toda e qualquer criança e a todo adolescente, indistintamente, a condição de sujeitos dos direitos inerentes à pessoa, destinatários da proteção integral, reconhecendo a sua condição de pessoa em desenvolvimento, impondo à família, à sociedade e ao Estado, nos termos da Carta Constitucional, o dever de assegurar, com prioridade absoluta, a efetivação de direitos fundamentais.

Não se há olvidar acerca da flagrante ruptura com o sistema até então vigente, adstrito ao chamado “Código de Menores” e sua feição “menorista”, notadamente no que toca a direitos individuais e garantias processuais.

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Cumpre-nos ainda registrar a construção legal de um microssistema processual diferenciado, que culmina com os vetores de simplificação, agilização e celeridade processuais, consoante nos propomos a investigar, a partir de dispositivos legais de natureza processual a seguir em destaque.

Não obstante, com vinte e cindo anos de vigência, o ECA ainda continua sendo alvo de duras críticas daqueles que ainda não decodificaram a opção legislativa única de criação de um conjunto de normas protetivas às crianças e aos jovens, erigindo -os à condição de sujeitos de direitos, objetivando afastar qualquer forma de negligência, violência e exploração, como de resto, ademais, assegurando uma rede de proteção a direitos básicos da pessoa humana, objetivando evitar a marginalização em relação a benefícios sociais e a maior inclusão social: essa a mudança de paradigma a que se propõe esse sistema jurídico!

2. A doutrina da proteção integral da criança e do adolescente

A fonte mais importante da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, no direito brasileiro, é, naturalmente, a Constituição Federal, que, no seu art. 277, expressa ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Nossa lei maior não emprega a expressão “proteção integral”, mas os seus termos denotam de forma inequívoca a intenção do legislador constitucional de consagrá-la. Quando a norma fala em “colocar a salvo” da “negligência, discriminação, etc.” está, em outras palavras, tratando de proteção. Da mesma forma, o amplíssimo elenco de direitos fundamentais (vida, saúde, alimentação, educação etc.) só pode ser entendido com o significado de integral1.

Nem poderia ser diferente, tendo em vista que já em 1924 a Liga das Nações adotou a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança (documento que, posteriormente, deu lugar à Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20.11.1959), se reconhecia a necessi-dade de proteção especial às crianças. Aliás, foram principalmente estes atos internacionais que acabaram por gerar a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 20 de novembro de 1989 (aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo
n. 28/90 e promulgada pelo Decreto n. 99.710/90), que é, hoje em dia, o principal diploma internacional de proteção da criança2.

A necessidade de proteção especial se justifica, como se enunciou na mencionada Declaração de 1959, em virtude da “falta de maturidade física e mental”3. Assim, além dos direitos fundamentais comuns a toda pessoa humana, podemos identificar alguns especiais relativos à criança e ao adolescente, conforme bem explica Rodrigo da Cunha Pereira4:

Estes [referindo-se às crianças e aos adolescentes], além de detentores dos direitos fundamentais “gerais” — isto é, os mesmos a que os adultos fazem jus —, têm direitos fundamentais especiais, os quais lhes são especialmente dirigidos. Garantir tais direitos significa atender ao interesse dos menores.

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Merece ser citado, aqui, o art. 227 da CF, que contém a síntese dos direitos fundamentais dos menores, além de registrar que eles são a prioridade absoluta para a ordem jurídica [...].

Nessa perspectiva, como bem destacou Cláudia Maria Carvalho do Amaral Vieira, tais direitos fundamentais específicos de que são titulares as crianças e os adolescentes geram intervenção ativa do Estado para sua concretização, podendo ser enquadrados na categoria de direitos fundamentais de segunda dimensão (ou geração, como se refere parte da doutrina)5. De fato, o próprio caput do mencionado art. 227 estatui que a garantia dos mencionados direitos fundamentais da criança e do adolescente é dever da família, da sociedade e do Estado. Por outro lado, o § 1º do mesmo dispositivo refere-se à promoção, pelo Estado, de programas de assistência à criança e ao adolescente.

Ademais, como esclarece a mesma autora, a amplitude da proteção constitucional implica considerar a dupla legitimação para defesa de tais direitos fundamentais, isto é, além do interesse individual de uma determinada criança ou de um adolescente, frequentemente verificamos que há subjacente um interesse da própria sociedade, caracterizado como interesse difuso, passível de proteção pelos entes legitimados para tanto6.

Todos os aspectos a que nos referimos acima levam a concluir, sem sombra de dúvida, que a garantia constitucional expressa no art. 227 projeta-se em nosso sistema jurídico de forma extremamente ampla. Mas a dimensão da proteção constitucional só pode ser realmente compreendida sob a referência da “prioridade absoluta”.

Com efeito, o dispositivo constitucional, ao prescrever a exigência de assegurar os direitos fundamentais da criança e do adolescente, expressa que isso se deve dar com “absoluta prioridade”. Isso significa, portanto, um dever de priorização no que tange às políticas públicas destinadas a garantir os direitos fundamentais da criança e do adolescente. Considerando que o Estado brasileiro frequentemente alega falta de recursos para dar pleno atendimento aos direitos fundamentais reconhecidos no ordenamento jurídico, o fato de o comando constitucional estabelecer a priorização para essa categoria é de significativa relevância.

É justamente nesse contexto, de ampla proteção constitucional, que se insere o Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA (Lei n. 8.069/90), que veio para dar concretização às promessas constitucionais e aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nessa área. Não deixa de ser sintomático que o próprio artigo primeiro do ECA principia estatuindo que “esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”.

Podemos interpretar do referido dispositivo legal que o ECA existe em função do dever constitucional de propiciar a proteção integral à criança e ao adolescente. Os diversos preceitos que compõem o diploma legal devem ser lidos e interpretados a partir dessa premissa: dar proteção integral.

Na mesma esteira, encontramos o caput do art. 4º do ECA, em redação bastante semelhante ao art. 227, CF, mais uma vez estabelecendo que essa proteção integral deve ser absoluta prioridade (inclusive especificando, no seu parágrafo único, o que compreende esta primazia legal).

Não é difícil imaginar que essa preocupação em assegurar proteção integral à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, vai se refletir em diversos dispositivos do ECA em matéria processual.

Com efeito, de acordo com a visão atual da doutrina, a jurisdição é intimamente ligada à proteção de direitos fundamentais. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira e Daniel Mitidiero, tratando das relações entre processo e Constituição, identificam dois momentos da constitucionalização do processo. A primeira constitucionalização é direcionada à contenção do arbítrio do Estado, sendo que na

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segunda, que nos interessa no caso, o “processo civil passa a ser compreendido na perspectiva dos direitos fundamentais”7.

De modo ainda mais enfático, Luiz Guilherme Marinoni8, a tratar da visão contemporânea da jurisdição, pontifica:

Em resumo: quando se afirma que a jurisdição tem o dever de tutelar os direitos se quer dizer que a jurisdição tem o dever de aplicar a lei na dimensão dos direitos fundamentais, fazendo sempre o resgate dos valores substanciais neles contidos. Tutelar os direitos, em outros termos, é aplicar a lei, diante das situações concretas, a partir dos direitos fundamentais. É o atuar a lei na medida das normas constitucionais e dos valores nelas encerrados.

Ora, se ao próprio processo deve ser compreendido a partir da necessidade de aplicação das normas constitucionais e da efetivação dos direitos fundamentais, o que não dizer de direitos fundamentais que devem ser assegurados com prioridade absoluta...

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