Reflexos da lei 9.873/1999 no prazo prescricional dos procedimentos de competência do conselho administrativo de defesa económica

AutorRogério F. Taffarello
Páginas188-196

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I - Introdução

Tem-se verificado, hodiernamente, uma inesperada controvérsia entre operadores do direito no que concerne à interpretação devida pelo Conselho Administrativo de Defesa Económica - CADE - de dispositivo inserido no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei 9.873/ 1999, cujas consequências têm sido crescentemente notadas nos anos mais recentes.

Referido diploma legislativo, ao cuidar do estabelecimento de prazos de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal direta e in-direta, logrou modificar o quantum dos lapsos temporais respectivos para casos em que a infração administrativa averiguada também venha a constituir crime, quando a prescrição passa a ser regida pelo prazo observado na legislação penal, por força do art. 12,§22, da Lei 9.873/1999.

No âmbito do direito concorrencial, a controvérsia exsurge do fato de que, dentre os dez tipos penais arrolados pela assim chamada "Lei das Licitações" (Lei 8.666/1993), seis cominam penas máximas superiores a dois anos de privação de liberdade, o que, de acordo com previsão do art. 109 do Código Penal Brasileiro, torna os respectivos prazos prescricionais superiores ao lapso temporal de cinco anos que fora expressamente previsto pela "Lei do CADE" (Lei 8.884/1994), em seu art. 28, e que, desde muito, vinha sendo tradicionalmente adotado no direito administrativo brasileiro de modo geral.

Questiona-se, pois, a aplicação do preceito em sede de direito intertemporal - ou seja, para infrações havidas antes da entrada em vigor da Lei 9.873/1999 sobre as quais somente haja incidido causa de suspensão ou interrupção do prazo prescri-cional após passados cinco anos ou mais desde a data do ato ou da cessação da infração permanente, porém antes de esgotado o novo prazo prescricional devido, em conformidade com a previsão da lei penal.

Apresentado o problema, cujas implicações têm sido discutidas em procedimentos ora correntes no CADE, cumpre realizar um acurado (ainda que breve, pois, ao

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final, pretende-se demonstrar não se estar tratando de questão demasiadamente complexa) estudo da legislação administrativa brasileira atinente à matéria e de sua devida interpretação - tanto em sede jurispru-dencial quanto, e, sobretudo, doutrinária. Destarte, poder-se-á obter suficientes subsídios para demonstrar aquela que nos parece ser a única conclusão possível a respeito.

II - Conceito e finalidade da prescrição

Assim como a decadência, o instituto jurídico da prescrição decorre de um imperativo de ordem pública, fazendo-se presente em todas as áreas do direito público e privado. Seus fundamentos são de importância basilar em um Estado Democrático de Direito, cuja ordem jurídica gravita em torno dos valores essenciais da segurança e da justiça.

Se é por questão de justiça que se reconhece a supremacia constitucional e o - respeito aos princípios fundamentais do direito -r- tais como os da legalidade, da isonomia e da irretroatividade da norma punitiva mais gravosa - é em nome da segurança que se visa a manter a estabilidade das situações jurídicas constituídas, e, após o decurso de determinado tempo, mesmo daquelas potencialmente controvertidas. Aí reside a teleologia do conceito da prescrição, explicada com acuidade por San Tiago Dantas:

"(...) a prescrição e a decadência visam a punir a inércia de um titular. Alguém tem um direito, mas não o usa; (...).

"Esta influência do tempo, consumido do direito pela inércia do titular, serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica, que é estabelecer a segurança das relações sociais.

"Como passou muito tempo sem modificar-se o atual estado de coisas, não é justo que se continue a expor as pessoas à insegurança que o direito de reclamar mantém sobre todos, como unia espada de

Dâmocles. A prescrição assegura que, daqui em diante, o inseguro é seguro; quem podia reclamar não mais o pode."1

Por esse motivo, a prescrição, no campo do direito público, não constitui direito subjetivo do acusado, mas a perda do ius persequendi por parte do Estado - que, por não ter agido dentro de um íapso temporal previamente fixado, é punido em virtude de sua inércia e em homenagem à segurança jurídica, pacificando situações potencialmente litigiosas. Em poucas palavras, trata-se, primacialmente, da perda do direito estatal de punir ou executar a punição pelo decurso do tempo sem que tal direito haja sido exercido - eis aí o conceito básico de prescrição.

Nos tempos atuais, resta absolutamente assentada a noção de que a prescrição ocorre, como visto, por ser a segurança um imperativo de justiça. Está presente inclusive no campo do direito civil, tencionando regular relações entre particulares, como matéria de ordem pública. Se assim o é, tanto mais importância o instituto passa a ter em se tratando de direito público, sobretudo no que concerne ao direito público de natureza sancionatória, como é o caso do direito administrativo punitivo.

III-Natureza jurídica da sanção administrativa como óbice à retroatividade da "lex gravior"

Nãos obstante a natureza jurídica das normas administrativas sancionatórias possa parecer incontroversa atualmente à maioria dos publicistas, tal questão foi objeto de alguma controvérsia doutrinária e juris-prudencial no passado, dando ensejo a alguma confusão interpretativa. Mas, já em meados do século passado, o ilustre magistrado Nelson Hungria, principal revisor do Código Penal Brasileiro (1940), manifestava-se, em texto que se tornaria clássico:

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"(...) não há falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal. A separação entre um e outro atende apenas a critérios de conveniência e oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do estado, variável no tempo e no espaço (...)• A identidade essencial entre o ilícito administrativo e o delito penal é atestada pelo próprio fato histórico, aliás reconhecido por Gold-schmidt, de que 'existem poucos delitos penais que não tenham passado pelo estágio do delito administrativo'. Entre nós, não há razão alguma para rejeitar-se o sistema de subordinação da ação disciplinar à ação penal."2

É de se notar o fato de existir, deveras, um único jus puniendi estatal, a se manifestar ora pela instância penal, ora pela instância administrativa. Deste modo, há que se considerar haver apenas uma diferença quantitativa - e não qualitativa - entre ambas as vias sancionatórias - que, por seu turno, requerem a existência de uma mesma principiologia com vistas à limitação do poder estatal de constrição sobre o indivíduo, conforme se verá doravante.

A esse respeito, cumpre ressaltar, no direito brasileiro atual, as lições dos eminentes publicistas Celso António Bandeira de Mello e Luís Roberto Barroso. Consoante este, "o direito administrativo punitivo é apenas mais uma forma de manifestação do chamado poder punitivo do Estado. Sua diferenciação relativamente ao direito penal é apenas de grau ou, muitas vezes, mera opção legislativa"3 - enquanto que, para o primeiro, "não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre infra-ções e sanções administrativas e infrações e sanções penais; o que as aparta é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção".4

No mesmo sentido têm-se posicionado os tribunais superiores, podendo-se destacar, como exemplo, por sua clareza e concisão, breve assertiva do Ministro Humberto Gomes de Barros, para quem "a punição administrativa guarda evidente afinidade, estrutural e teleológica, com a sanção penal".5

A distinção entre sanções penais stricto sensu e sanções administrativas vem a ser, portanto, meramente de opção dogmática; formal, consoante igualmente se manifestam Heraldo Garcia Vitta6 e Daniel Ferreira,7 ambos fundando suas lições nos entendimentos pioneiros de Geraldo Ata-liba, Luis Vicente Cernicchiaro e Régis Fernandes de Oliveira. A opção legislativa entre uma ou outra modalidade de sancio-namento resulta, então, muito mais da necessidade de se buscar a melhor eficácia social da punição do que da ocorrência de uma pretensa diversidade axiológica que haveria de ser ínsita à norma.8

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