A reforma do Código de Processo Penal

AutorProf. Rômulo de Andrade Moreira
CargoProfessor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS
Páginas1-99

Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS. Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais do Ministério Público da Bahia. Membro da Associação Internacional de Direito Penal, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

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I Introdução

Neste trabalho, iremos analisar as principais modificações a serem introduzidas em nosso sistema processual penal, acaso aprovados os respectivos projetos de lei, furtando-nos a comentar, apenas, as mudanças previstas para o procedimento no Tribunal do Júri, tendo em vista as peculiaridades do tema.

II A comissão e os anteprojetos

O então Ministro da Justiça, Dr. José Carlos Dias, ao assumir o Ministério, editou o Aviso nº. 1.151/99, convidando o Instituto Brasileiro de Direito Processual - IBDP, do qual somos membros, a apresentar uma proposta de reforma do nosso Código de Processo Penal. Este mesmo Ministro, agora por via da Portaria nº. 61/00 constituiu uma Comissão para o trabalho de reforma, tendo como membros os juristas Ada Pellegrini Grinover Page 2 (Presidente), Petrônio Calmon Filho (Secretário), Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti (que mais tarde saiu, sendo substituído por Rui Stoco), Rogério Lauria Tucci e Sidnei Beneti.

Com a inesperada e lamentável saída do Ministro Dias o novo titular da Pasta, Dr. José Gregori, pela Portaria nº. 371/00 confirmou a Comissão anteriormente formada, com a substituição já referida.

Ao final dos trabalhos, a Comissão de juristas entregou ao Ministério da Justiça, no dia 06 de dezembro de 2000, sete anteprojetos (todos acompanhados de uma exposição de motivos) que, por sua vez, originaram os seguintes projetos de lei:

  1. ) Projeto de lei nº. 4.209/01: investigação criminal;

  2. ) Projeto de lei nº. 4.207/01: suspensão do processo/procedimentos;

  3. ) Projeto de lei nº. 4.205/01: provas;

  4. ) Projeto de lei nº. 4.204/01: interrogatório/defesa legítima;

  5. ) Projeto de lei nº. 4.208/01: prisão/medidas cautelares e liberdade;

  6. ) Projeto de lei nº. 4.203/01: júri (a respeito do qual não vamos discorrer pelo motivo já revelado);

  7. ) Projeto de lei nº. 4.206/01: recursos e ações de impugnação.

III O atual Código de Processo Penal

O nosso Código de Processo Penal é do ano de 1941 e ao longo desse período poucas alterações sofreu em que pese serem evidentes as mudanças sociais ocorridas no País e tendo em vista a nova ordem constitucional vigente.

O seu surgimento, em pleno Estado-Novo1, traduziu de certa forma a ideologia de então, mesmo porque "las leyes son e deben ser la expresión más exacta de las necesidades actuales del pueblo, habida consideración del conjunto de las contingencias históricas, en medio de las cuales fueron promulgadas" (grifo nosso).2

À época tínhamos em cada Estado da Federação um Código de Processo Penal, pois desde a Constituição Republicana a unidade do sistema Page 3 processual penal brasileiro fora cindida, cabendo a cada Estado da Federação a competência para legislar sobre processo, civil e penal, além da sua organização judiciária.

Como notara o mestre Frederico Marques, "o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal."3

Até que em 03 de outubro de 1941 promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.689, entrando em vigor a partir de 1º. de janeiro do ano seguinte. Para resolver principalmente questões de direito intertemporal, promulgou-se o Decreto-Lei nº. 3.931/41, a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal.

Este Código, elaborado, portanto, sob a égide e "os influxos autoritários do Estado Novo", decididamente não é, como já não era "um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal", como dizia Frederico Marques. Segundo o genial mestre paulista, "continuamos presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas do sistema escrito (...) O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados Brasileiros. (...) A exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de por cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confusionismo e absoluta falta de técnica."4

Assim, se o velho Código de Processo Penal teve a vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo, até por questões político/históricas, o ranço de um regime totalitário e contaminado pelo fascismo, ao contrário do que escreveu na exposição de motivos o Dr. Francisco Campos, in verbis: "Se ele (o Código) não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais."

É bem verdade que ao longo dos seus sessenta anos de existência algumas mudanças pontuais foram marcantes e alvissareiras como, por exemplo, o fim da prisão preventiva obrigatória (Leis de nºs. 5.349/67, 8.884/94, 6.416/77 e 5.349/67), a impossibilidade de julgamento do réu revel citado por edital que não constituiu advogado (Lei nº. 9.271/96), a revogação do seu art. 35, segundo o qual a mulher casada não poderia exercer o direito de queixa sem o consentimento do marido, salvo quando estivesse separada dele ou quando a queixa contra ele se dirigisse (Lei nº. 9.520/97); modificações Page 4 no que concerne à prova pericial (Lei nº. 8.862/94); a possibilidade de apelar sem a necessidade de recolhimento prévio à prisão (Lei nº. 5.941/73); a revogação dos artigos atinentes ao recurso extraordinário (Lei nº. 3.396/58), etc.

Por outro lado, leis extravagantes procuraram aperfeiçoar o nosso sistema processual penal, podendo citar, verbi gratia, as que instituíram os Juizados Especiais Criminais (Leis nºs. 9.099/95 e 10.259/01), e que constituem, indiscutivelmente, o maior avanço já produzido em nosso sistema jurídico processual, desde a edição do Código de 1941. Há, ainda, a que disciplinou a identificação criminal (Lei nº. 10.054/00), a proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas (Lei nº. 9.807/99), a que possibilitou a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais (Lei nº. 9.800/99), a lei de interceptações telefônicas (Lei nº. 9.296/96), a Lei nº 8.038/90 que disciplina os procedimentos nos Tribunais, e tantas outras, algumas das quais, é bem verdade, de duvidosa constitucionalidade.

IV A finalidade da reforma

Pois bem. Este é o quadro atual. Além de algumas alterações pontuais, seja no próprio texto consolidado, seja por intermédio de leis esparsas, nada mais foi feito para modernizar o nosso diploma processual penal, mesmo após a nova ordem constitucional consagrada pela promulgação da Carta Política de 1988.

E, assim, o atual código continua com os vícios de seis décadas, maculando em muitos dispositivos o sistema acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado (vide o seu art. 594, a título de exemplo), olvidando-se da vítima, refém de um excessivo formalismo (que chega a lembrar o velho procedimentalismo), assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos (bastando citar a disciplina das nulidades5).

Destarte, podemos apontar como finalidades precípuas desta reforma que ora se avizinha a modernização do velho código e a sua adaptação ao modelo acusatório, com os seus consectários lógicos, tais como a distinção nítida entre o julgador, o acusador e o acusado, a publicidade, a oralidade, o contraditório, etc.

A propósito, sobre o sistema acusatório, assim escreveu Vitu: Page 5

"Ce système procédural se retrouve à l'origine des diverses civilisations méditerranéennes et occidentales: en Grèce, à Rome vers la fin de la Republique, dans le droit germanique, à l'époque franque et dans la procédure féodale.

"Ce système, qui ne distingue pás la procédure criminelle de la procédure, se caractérise par des traits qu'on retrouve dans les différents pays qui l'ont consacré.

"Dans l'organisation de la justice, la procédure accusatoire suppose une complète égalité entre l'accusation et la défense."6

Ademais, a reforma está mais ou menos consentânea com os princípios estabelecidos pelo Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero América, onde encontramos alguns princípios básicos, a saber:

1) "O julgamento e decisão das causas penais será feito por juízes imparciais e independentes dos poderes do Estado, apenas sujeitos à lei." (art. 2º.).

2) "O imputado ou acusado deve ser tratado como inocente durante o procedimento, até que uma sentença irrecorrível lhe imponha uma pena ou uma medida de segurança." (art. 3º.).

3) "A dúvida favorece o imputado". (idem).

4) "É inviolável a defesa no procedimento." (art. 5º.).

V As reformas processuais penais na américa latina

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