Reforma do sistema processual brasileiro: necessidade de harmonização do sistema processual

AutorLuiz Guerra
Páginas87-106

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1. Introdução

Vivemos tempos de reformas! Há em curso no Congresso Nacional projetos de lei que cuidam da reforma do Código de Processo Civil, do Código de Processo Penal e do Código Comercial, além de vários outros que visam alterar o Código Civil e o Código Penal. Também há inúmeros projetos que tratam de leis esparsas para alterar o Código Tributário e o Código Falimentar e de Recuperação Econômica de Empresas.

Temos a impressão de que tudo que fora feito no passado, não muito distante, perdeu cor e sentido. Outra conclusão que se extrai é a de que as leis do presente são inservíveis nos dias que correm e não mais atendem aos reclamos dos jurisdicionados.

A pergunta que não quer calar é: efetivamente necessitamos de reformas ou necessitamos de autorreformas? Necessitamos reformar as leis ou os ho-mens? Reformamos os institutos ou a forma de pensar ou o modo de compre-ender as coisas dos novos tempos para melhor aplicar as leis existentes? Nesse particular, há quem defenda amplas reformas. Há também quem defenda a desnecessidade delas se tivermos postura diferente na releitura das leis atuais.

Eu participo do grupo que pede reformas! Quero reformas em prol da efetiva e célere prestação jurisdicional, porém sob o esteio da segurança jurídica e com qualidade das decisões, sem descurar da urgente necessidade de exigir nova postura do Poder Judiciário e também do melhor preparo técnico-científico dos juízes!

Dentro do tema da reforma processual, quero e vou tratar neste trabalho sobre o processo comercial, especificamente o processo concursal – com as

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ações e os recursos típicos dentro do processo falimentar – como também da necessidade de harmonização do sistema processual brasileiro.

É necessário, antes de tratar do tema, criar ambiente propício à sedimentação da exposição. Falar de reforma do direito processual não é apenas falar de reforma do direito processual civil. Não é isso! É muito mais do que isso! Os doutos, por equívoco ou conveniência, esquecem que mais do que os processos civil e penal, temos outros sistemas processuais que estão a merecer estudo e revisão, aliás, com urgência, como sinalizam o processo comercial, o processo tributário, o processo trabalhista, o processo penal, o processo penal militar e o processo constitucional-administrativo – ciências que se apresentam com métodos e técnicas diferenciadas, cada qual com as suas peculiaridades e desdobramentos.

Temos de pensar em reforma processual global, de modo que todo o sistema processual brasileiro realize-se com eficiência, celeridade e segurança jurídica.

É fundamental que essa ideia seja posta à mesa, sem receio às críticas. Desarmados dos preconceitos poderemos avançar, expor, pensar e refletir sobre a reforma processual. Na condição de cientista e operador da ciência processual, tenho de lutar pela melhoria na qualidade da jurisdição – que deve ser o foco principal da reforma do sistema processual. Por isso, afirmo que devemos tratar o sistema processual de modo global, amplo, que se inicia com os mecanismos de acesso à justiça e encerra-se com a justa e rápida entrega da prestação jurisdicional, com as garantias constitucionais e qualidade das decisões.

Não podemos pensar pequeno. Não podemos focar o pensamento nos estreitos caminhos do processo civil como solução para os problemas nacionais! Temos de pensar em todo o sistema processual brasileiro. Devemos pensar a ciência processual global! Devemos reformar a ciência processual global mediante a criação de sistema harmônico e servível aos variados ramos do direito brasileiro.

O direito processual – após longa discussão nas doutrinas alemã e italiana – inaugurou o século XX sob a orientação de que ação é típico direito público e autônomo – que independe do direito material. Dessa forma, é incompreensível que tenhamos tantos códigos processuais, com regras tão díspares, se o direito processual é único – é o direito público e autônomo de pedir!

O direito processual deve ser único porque único é o direito de pedir. O direito de pedir é universal! Nessas condições não faz sentido que não seja

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único. A reforma ideal deve ser a reforma do sistema processual brasileiro, e não a reforma do Código de Processo Civil. Se a reforma for departamentalizada, então, necessariamente há que se criar harmonia entre os sistemas processuais, embora atendendo-se às peculiaridades do direito material dos variados ramos da ciência jurídica.

É lamentável que essa preocupação, que deveria ser, a rigor, a tônica da reforma, não gere interesse na sistematização dos sistemas processuais, daí as mazelas do falido sistema processual brasileiro. Publicamente, aqui estou a defender a harmonização do sistema processual brasileiro!

Chega de pensar isoladamente! Os defensores de suas disciplinas pensam egoisticamente nas suas áreas de interesse. Cada qual procura individual-mente tratar da reforma em seus variados ambientes. Ninguém se dispôs a debruçar-se sobre o tema da sistematização da reforma processual. Não é possível no atual estágio de economia de massa – com demandas represadas no Poder Judiciário – que não se pense sobre a sistematização de todo o sistema processual brasileiro!

Nada mais oportuno e adequado do que apontar a necessidade da reforma do sistema processual global – do sistema processual brasileiro sob o enfoque da sistematização ou, ao menos, da harmonização das regras processuais entre os universos do direito material.

É necessário compreender que sistema processual é mais do que processo civil. A reforma que se impõe não é a do CPC, mas do sistema processual brasileiro. A reforma deve conter regras processuais comuns, com harmonia.

2. Sistematização do direito processual

Quando menciono em minhas aulas ou em palestras o tema do direito processual comercial, os jovens – refiro-me àqueles que não conheceram o direito mercantil à luz do Código Napoleônico, que influenciou todo o direito europeu e também o Código Comercial brasileiro, de 1850 – olham-me sob o crivo da dúvida! Pensam eles: esse professor, já desgastado pelo tempo e à porta da aposentadoria, está falando impropriedades! Tenho dó desses meninos que estudaram o direito comercial à luz do famigerado Código Civil de 2002. Foram punidos e não sabem!

Eles não tiveram a sorte de estudar e conhecer o verdadeiro direito dos negócios, o original direito mercantil, como estava posto no Código Comer-

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cial de 1850, na clássica orientação da teoria dos atos de comércio do direito francês! Não que o direito italiano, com a teoria da empresa, seja inservível. Não é isso! Refiro-me apenas às impropriedades contidas no livro II – Direito de Empresa, do Código Civil, inclusive com a ilógica inserção de parte de matéria mercantil no Código Civil de 2002!

Se vamos tratar dos processos civil e comercial e respectivas reformas, então devemos iniciar os estudos a partir de 1822, quando o Brasil ganhou a sua independência. À época vigoravam as Ordenações Filipinas (as Ordenações do Reino) e delas se utilizava o Império tanto para gerir a administração da justiça como regrar as relações jurídicas processuais.

Com a chegada do Código Comercial, em 1850, normas para o processamento das causas comerciais foram criadas pelo Regulamento 737. O mencionado ordenamento, na seara do direito processual comercial e, por extensão, utilizado posteriormente às causas cíveis, pode ser concebido como o primeiro código processual brasileiro, como afirmou Moacyr Amaral Santos (1981, p. 52):

Considerando-se a época em que se elaborou e as condições brasileiras, o Regulamento nº 737, não só pela linguagem clara e precisa, como ainda pela simplificação dos atos processuais, redução dos prazos e melhor disciplina dos recursos, não obstante fiel às linhas mestras do direito filipino, ‘marcou sem dúvida uma fase de progresso em nosso direito processual’, que nele, ainda hoje, vai encontrar uma das fontes de numerosas instituições.

É necessário ir à fonte, à origem dos tempos para conhecermos os processos comercial e civil brasileiros. O primeiro grande arcabouço legal – responsável pela criação dos sistemas processuais comercial e civil – foi o atual (repito, o atual) e inesquecível Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850, chancelado com a rubrica de Sua Majestade, o Imperador, vindo pelas mãos de seu ministro e secretário de Estado dos Negócios da Justiça, Eusebio de Queiroz Coitinho Mattoso Camara.

O Regulamento 737 determinou a ordem do juízo no processo comercial e criou o processo comercial – o juízo comercial – ao afirmar na parte primeira – título I – capítulo I: “Art. 1º. Todo o Tribunal ou Juiz que conhecer dos negocios e causas commerciaes, todo o arbitro ou arbitrador, experto ou perito que tiver de decidir sobre objectos, actos, ou obrigações commerciaes, he obrigado a fazer applicação da Legislação Commercial aos casos occorrentes (Art. 21 Tit. unico do Codigo Commercial).”

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O Regulamento 737 foi decretado em obediência ao art. 27 do Código Comercial de 25 de junho de 1850, que afirmava: “Art. 27 – O Governo, além dos Regulamentos e Instruções da sua competência para a boa execução do Código Comercial, é autorizado para, em um Regulamento adequado, deter-minar a ordem do Juízo no processo comercial; e particularmente para a execução do segundo período do artigo 1º e artigo 8º, tendo em vista as disposições deste Título e as do Código Comercial: e outro sim para estabelecer as regras e formalidades que devem seguir-se nos embargos de bens, e na detenção pessoal do...

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