Reforma Previdenciária e Direitos Sociais Fundamentais

AutorFlávio Roberto Batista
Páginas46-52

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Ver Nota1

O objetivo deste breve texto é refletir criticamente sobre o tema da reforma previdenciária de maneira ampla, contextualizando, portanto, a Proposta de Emenda Constitucional n. 287/2016 na série de reformas previdenciárias que vêm sendo operadas no Brasil desde 1988, à luz do conceito de direitos sociais fundamentais.

Quando se lida com a ideia de direitos sociais fundamentais, a mera enunciação da expressão traz uma grande gama de problemas cujo tratamento é necessário a fim de alcançar sua compreensão completa. Sua importância deriva do fato de que, nas últimas décadas, toda a pesquisa científica em direito vem sendo conduzida pela perspectiva dos direitos fundamentais.

Há uma multiplicidade de enfoques nessas pesquisas, mas há um núcleo invariável: a ideia de que os direitos fundamentais estariam baseados na categoria da dignidade humana, que seria, inclusive, alçada à categoria de sobreprincípio iluminador de todo o sistema constitucional de proteção dos direitos fundamentais.

É importante destacar isso porque esta categoria é diretamente retirada, sem qualquer mediação, da filo-sofia de Immanuel Kant. Essa derivação imediata da filosofia kantiana causa problemas para a elaboração teórica do campo dos direitos fundamentais, pois Kant é um autor que expressa uma forma de pensar ligada ao momento da consolidação do capitalismo no final do século XVIII. Basear toda uma leitura do direito numa ideia retirada diretamente de Kant, atrai diversas consequências que estão presentes na sua filosofia para o tratamento dos direitos fundamentais.

A primeira delas está ligada ao adjetivo “sociais” que se atribui a parte dos direitos fundamentais. Essa adjetivação faz pressupor que existem categorias distintas de direitos fundamentais, sociais e não-sociais – ou individuais. Essa cisão vem causando muitos danos para uma leitura de direito baseada na ideia de direitos fundamentais. Aliás, durante muito tempo, grande parte da produção teórica mais profunda e sofisticada acerca da questão dos direitos fundamentais gastava energia em buscar justificar a assim chamada fundamentalidade dos direitos sociais2, inclusive com a divisão da fundamentalidade em formal, ligada à positivação constitucional, e material, que faria referência à ancoragem no conceito de dignidade de matriz kantiana.

Esse tipo de situação, embora possa vir a ser resol-vida na perspectiva científica, acaba se incorporando ao senso comum como um preconceito dominante da época. A solução para esta espécie de miopia teórica em matéria de direitos sociais fundamentais é emprestar-lhes um olhar mais amplo, que permita visualizá-los, juntamente com o contexto de todos os direitos fundamentais, como uma estrutura de alocação de recursos, evidenciando sua dúplice condição.

O tratamento dos direitos fundamentais não apenas em sua fundamentação filosófica kantiana, mas reinseridos na totalidade social, permite perceber que é considerado fundamental, na perspectiva do direito, aquele tipo de decisão política que demanda socialmente uma cristalização que a proteja contra decisões de maiorias conjunturais. Assim, no momento de se constituir o Estado – e não é à toa que o documento que consagra esse momento é chamado de Constituição – considerou-se importante garantir os direitos fundamentais, como, exemplificativamente, o direito a uma proteção social adequada, tão importante que na própria Constituição

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entendeu-se colocá-lo a salvo da possibilidade de transformação para impedir que uma eventual maioria parlamentar ocasional tolhesse do povo essa possibilidade.

Toda decisão política fundamental que adquire essa característica de cristalização contra maiorias ocasionais, e que pode ser chamada de direito fundamental, pode também ser observada por duas óticas distintas e complementares. Uma delas é a que nos toca diretamente no cotidiano de operadores do direito: a ótica propriamente jurídica da transformação do direito fundamental em direito subjetivo. O grande problema desta ótica é que ela envolve uma consideração que, por mais mediações que sejam feitas, inclusive com a possibilidade de cole-tivização da defesa, é inexorável a redundância em uma proteção que se concretiza e se materializa no plano do indivíduo enquanto titular dos direitos subjetivos e no plano patrimonial desse indivíduo. Isso fica especial-mente patente na esfera da seguridade social, como no caso do sequestro de verbas para concretização de decisões descumpridas em ações para fornecimento de medicamentos. Este talvez seja o caso mais emblemático a demonstrar que direitos fundamentais, invariavelmente, consistem em direitos individuais e patrimoniais3.

Existe, entretanto, outra ordem de observação desse fenômeno, que pode ser chamada de orçamentária, de políticas públicas ou de universalidade. Ela envolve a proteção desses direitos enquanto organização do Estado. É importante perceber que durante muitos anos fazia-se uma leitura de direitos fundamentais, que acaba sendo incorporada ao senso comum, em que a primeira esfera era reservada a uma das categorias dos direitos fundamentais – os individuais – enquanto os direitos sociais ficariam restritos a essa segunda esfera. Daí sua adjetivação “social”. Parte-se do princípio que certos de direitos só são factíveis na perspectiva jurídica enquanto outros apenas na perspectiva de política pública, o que é, evidentemente, falso. O melhor exemplo é o da proteção do direito de propriedade, que pode ser feita por meio do Poder Judiciário, em ações individuais de cobrança e sua respectiva execução, por exemplo, mas também com o policiamento ostensivo4. Assim, pouco importa se estamos diante do direito que se convencionou chamar de individual ou de social: ele pode encontrar proteção nessas duas órbitas.

Com isso, é possível passar à segunda mediação necessária para o tratamento das reformas previdenciárias à luz dos direitos sociais fundamentais: a observação de como os diferentes modelos de Estado, ao longo da história, se relacionaram com a ideia de direitos fundamentais.

A relação entre o Estado e os direitos fundamentais ao longo da história não foi propriamente decorrente de decisões políticas, mas de transformações ocorridas na modalidade de reprodução econômica da sociedade. Mais uma vez, o campo da seguridade social é aquele em que esse fenômeno se expressa de modo mais vívido e intenso.

No século XIX, o mundo ocidental encontra-se no momento histórico em que a economia se industrializa e a condição de trabalho assalariado é universalizada. Com isso, o contrato de trabalho torna-se o núcleo da reprodução econômica e, consequentemente, surge a necessidade de universalização da condição de sujeito de direito. Somente a igual condição de sujeito de direito, então universalizada, permite que todos possam tomar parte em contratos, na condição de contratantes livres e iguais. A condição de proprietário, ainda que virtual, ou apenas de si mesmo, é espraiada para todos os integrantes da sociedade.

Nesse contexto, a única função que o Estado pode desempenhar é a de assegurar o funcionamento dessa sociedade contratual. O Estado se relaciona com os direitos fundamentais na condição de garante do que se convencionou chamar de direitos fundamentais de primeira geração, os direitos fundamentais individuais. Esse é o Estado que vai garantir a propriedade, o cumprimento dos contratos e a livre circulação de bens e mercadorias. É o Estado que mantém um aparato policial, um Poder Judiciário e realiza obras públicas de circulação, como estradas e ferrovias. É o Estado típico do século XIX, que não tem em seu horizonte nenhuma outra tarefa.

Quando se observa o Estado do século XIX e a forma de reprodução econômica à qual ele se refere à luz de seu financiamento, e não somente na ótica do direito subjetivo, percebe-se que esse Estado leva à sua máxima expressão as garantias inerentes ao direito tributário, como a legalidade, a isonomia, a vedação do confisco etc. O direito tributário, enquanto operacionalizador

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da captação de recursos pelo Estado para fazer frente às tarefas de direitos fundamentais individuais, é a expressão na própria cobrança de tributos daquilo que se defende na atuação prática do Estado.

Este cenário vem à ruína ao longo da primeira metade do século XX, de forma lenta e dolorosa, porque envolve duas guerras mundiais e uma crise de proporções catastróficas, entre elas...

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