Reforma processual trabalhista: O tratamento da litigância de má-fé na CLT

AutorBruno Freire e Silva
Páginas282-296

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1. Introdução

A recente aprovação da Lei n. 13.467 de 13 de julho do corrente ano alterou uma série de dispositivos na Consolidação das Leis do Trabalho, com significativo impacto no processo do trabalho, inclusive no que tange à sua estrutura e princípios.

Já tivemos oportunidade de destacar quatro pontos nas alterações da reforma: i) incorporação ao texto da CLT de muitas novidades do NCPC; ii) a reforma busca frear posições jurisprudenciais mais avançadas do TST, que não se restrinjam à interpretação de normas jurídicas; iii) há um tratamento mais moderado da lei no que tange à responsabilização dos sócios; iv) perfil mais isonômico no tratamento das partes litigantes, com penalização inclusive do empregado que litigar de má-fé.2

No presente artigo vamos analisar esse último ponto, isto é, o tratamento do litigante de má-fé na Consolidação das Leis do Trabalho, introduzido pela Reforma Trabalhista. Vejamos.

2. Considerações iniciais sobre a boa-fé

As garantias e direitos fundamentais previstos na Constituição Federal protegem a dignidade da pessoa humana e são verdadeiros cânones da relação entre o Estado e os indivíduos.

Na atual fase de constitucionalização do direito, denominado de neoconstitucionalismo pela doutrina, o novo Código de Processo Civil (NCPC) positiva em seu texto princípios consagrados na Carta Magna, como isonomia, segurança jurídica, duração razoável do processo, proporcionalidade, razoabilidade, legalidade, eficiência e publici-dade, entre outros.

A atual constitucionalização do processo traz inúmeros reflexos na seara processual comum, como promoção da boa-fé à norma fundamental, dispondo que todo aquele que participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé (art. 5º), além de determinar que o pedido e a decisão judicial sejam interpretados à luz do referido princípio (art. 322, § 2º, art. 489, § 3º), com reflexos no âmbito recursal (art. 1.013, § 3º, II) e na ação rescisória (art. 966, V), o que certamente também atinge o processo do trabalho.

Sob outro prisma, a boa-fé também constitui elemento nuclear do dever de cooperação, que traduz a ideia de que todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (art. 6º), tanto no processo civil como no processo do trabalho.

No processo contemporâneo, não há mais espaço para deslealdade, inverdades, má-fé ou qualquer outro artifício capaz de desviar o processo de sua finalidade e cumprimento de seus escopos sociais, políticos e jurídicos.

Exatamente por isso, o NCPC tratou com maior rigor a litigância de má-fé e a conduta do improbus litigator, majorando as penalidades outrora fixadas pelo CPC/1973, especialmente a multa e a indenização, para desestimular o litigante a atuar de forma desleal ou ímproba, o que também foi incorporado pela reforma processual trabalhista, com a inclusão de tais previsões e penalidades no texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

A ideia do presente artigo é abordar tais inovações sobre a matéria incorporadas ao texto da CLT e analisar as controvérsias envolvendo as penalidades daí decorrentes, bem como a responsabilização do advogado — que age de má-fé — pelos danos processuais causados aos demais sujeitos do processo.

3. A evolução da boa-fé no ordenamento jurídico

Relata-se que a primeira manifestação de repressão ao abuso do direito apareceu no Código Filipino, por orientação das Ordenações Manuelinas.3

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De toda forma, a noção de boa-fé (bona fides) foi cunhada primeiramente no direito romano. Foram os romanos que iniciaram os estudos sobre o princípio da boa-fé, dando-lhe um significado ético que, mais tarde, se transformaria em um instituto jurídico adotado em vários países.

No direito romano, o vocábulo fides apresentava três significados. O primeiro constava da Lei das XII Tábuas, a chamada fides-sacra, ligada à boa-fé de conotação religiosa e moral. Fides era a deusa da palavra dada, representante da fé jurada e protetora dos segredos. O segundo significado, a fides-fato, estava ligado à noção de garantia e o último relacionava-se à fides-ética, vista como um dever.4

No período da Idade Média, o direito civil foi fortemente influenciado pelo direito canônico, fase em que a boa-fé traduzia uma carga ética que se equiparava à ausência de pecado.

Já no Estado Liberal, época marcada pelos fortes influxos da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, o consensualismo triunfou, apoiando-se no princípio da autonomia da vontade em detrimento da boa-fé.5

A boa-fé somente foi positivada em 1804 com o advento do Código de Napoleão, o que, todavia, não foi suficiente para permitir seu desenvolvimento, já que nesse momento reinava o pensamento de que o juiz era apenas a “boca da lei”.

Antonio Menezes Cordeiro explica o fracasso da boa-fé no espaço juscultural francês, destacando “o bloqueio geral derivado de uma codificação fascinante e produto das limitações advenientes de um positivismo ingênuo e exegético”.6

Na verdade, a boa-fé só ganhou projeção a partir da entrada em vigor do Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch — BGB) em 1900, passando, a partir daí, a influenciar as demais codificações modernas.

Não se pode olvidar que os contornos atuais da boa-fé objetiva à luz do pensamento jurídico ocidental são resultado direto da doutrina e, principalmente, da jurisprudência alemã. Afirma-se que o desenvolvimento da cláusula geral da boa-fé constante do BGB foi o principal responsável pela difusão do princípio em outros sistemas de direito codificado.7

Sem dúvida, uma das maiores contribuições do BGB foi a distinção entre a boa-fé subjetiva (guter Glauben) e a boa-fé objetiva (Treu und Glauben).

A partir do regramento tedesco, alguns códigos civis europeus, como, por exemplo, o italiano (1942), o português (1966) e o espanhol (1974) adotaram expressamente a boa-fé objetiva em seus ordenamentos jurídicos.

Aqui no Brasil, o primeiro tratamento legislativo da boa-fé encontra-se no art. 131 do Código Comercial de 18508, dispositivo que não gozou de tanta efetividade, pois a boa-fé foi restringida à função de interpretação/ integração do contrato, não se reconhecendo seu papel de criadora de deveres.

Mais tarde, no Código Civil de 1916, a boa-fé ganhou propulsão, com ênfase em questões de família, possessória, usucapião e pagamento. Porém, de acordo com Judith Martins-Costa, a preocupação excessiva de Clóvis Beviláqua com a segurança, certeza e clareza não permitiu a inserção de cláusulas gerais e, por essa razão, a boa-fé ficou restrita às hipóteses de ignorância escusável.9

Décadas depois, com o advento do Código de Defesa do Consumidor (1990), a boa-fé passou a ser invocada não apenas para a interpretação de cláusulas contratuais, mas também para a integração das obrigações pactuadas, exigindo um comportamento escorreito e leal das partes no cumprimento de suas prestações.

Contudo, o grande ápice de valorização da boa-fé no tratamento legislativo veio com o Código Civil de 2002, que passou a considerá-la não apenas em casos de ignorância escusável (aspecto subjetivo), mas também como fonte de deveres autônomos nas relações contratuais (aspecto objetivo), através de cláusula geral no prólogo das normas de direito contratual.10

Com isso, acentuou-se a distinção entre a boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva. Como se sabe, a primeira denota estado de consciência ou de convencimento individual de atuar em conformidade ao direito aplicável, importando

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a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou sua íntima convicção.11Já a boa-fé objetiva pressupõe um padrão objetivo de conduta, de lealdade, transparência e, ao contrário da boa-fé subjetiva, o estado de ânimo e a intenção dos agentes não tem qualquer relevância12. Trata-se de preceito de mão dupla que funciona como espelho de conduta dos sujeitos.13

Para os fins desse artigo, entretanto, importa analisarmos um dos desdobramentos da boa-fé: a processual.

4. A boa-fé processual

Como relação jurídica plurissubjetiva, complexa e dinâ-mica14, o processo vem perdendo ao longo do tempo a natureza de instrumento ético voltado a pacificar com justiça15, muito em função da conduta dos sujeitos.

E, diante da degradação dos valores éticos da sociedade, surgiu a necessidade de se reprimir as condutas de má-fé praticadas pelos sujeitos processuais, incorporando-se, assim, aos deveres processuais a regra de atuar “com responsabilidade”.16

Com efeito, a instauração de um processo cria para os litigantes uma situação jurídica de sujeição aos deveres decorrentes do princípio da lealdade processual.17

Dessa forma, a relação jurídica estabelecida entre as partes e o juiz, assim como dos litigantes entre si, rege-se por normas de conduta que devem ser observadas e respeitadas por todos os sujeitos processuais, para que o processo não seja desviado de sua finalidade, garantindo-se, assim, uma prestação jurisdicional justa, com ética, lealdade e em tempo razoável.

Nesse contexto, a boa-fé processual passa a ser considerada um subprincípio geral da boa-fé, materializando-se em norma finalística que exige a delimitação de um estado ideal de coisas a ser alcançado por meio de comportamentos necessários a essa realização.18

É definida uma diretriz de conduta fundada, principal-mente, na lealdade, consideração e respeito às expectativas legítimas das partes e de...

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