A reforma trabalhista, o 'contrato realidade' e as fraudes à relação de emprego

AutorCássio Luís Casagrande e Vinícius Gozdecki
Páginas115-119

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Os empresários estão empolgados com a Reforma Trabalhista aprovada pelo Congresso. Alguns estão exageradamente otimistas. Muitos acreditam na promessa dos legisladores e pensam que as alterações na CLT criaram um novo regime de ampla liberdade de contrato, que teria liberado a contratação irrestrita de profissionais autônomos, autorizado a substituição de parcelas salariais por “prêmios”, franqueado amplamente a quitação extrajudicial do contrato laboral e permitido a terceirização irrestrita. Parece-nos que os pontos referidos, todavia, não têm o condão de afastar o princípio maior que rege o contrato de trabalho, que é o da proteção ao hipossuficiente.

É compreensível que o patronato esteja acreditando que, finalmente, a “classe empresária vai ao paraíso”. Afinal, a reforma trabalhista é obra do empregador, pelo empregador, para o empregador. No entanto, seria de boa cautela lembrar-lhes que o Direito não é feito apenas de leis supostamente objetivas (se assim fosse, os computadores poderiam ser programados para resolver todos os nossos problemas jurídicos). Subjacente às leis estão os princípios que as constituem — e, sim, há princípios na CLT, onde a reforma foi enxertada. Outro detalhe importante: pelo menos por enquanto, devemos interpretar as leis de acordo com a Constituição — e não o contrário. Além disto, mesmo nos países da Civil Law, há o peso da “tradição jurídica”, isto é, as práticas jurídicas vivenciadas, compartilhadas e consolidadas pela comunidade ao longo do tempo. O direito não se resume a um sistema legal puramente abstrato, lógico, autônomo e dissociado da realidade social, embora alguns ainda acreditem nesta fantasia positivista.

Mauro Cappelletti, no seu clássico e brilhante Juízes Legisladores?, lembra a lapidar frase do consagrado jurista norte-americano Roscoe Pound, para quem “a legislação, quando não se limita a colocar em forma de lei vinculante o que já foi adquirido pela experiência jurisdicional, implica todas as dificuldades e perigos próprios da profecia”. E isso é especialmente verdade nos sistemas de direito romano-germânico, em que se deposita grande fé na racionalidade abstrata do legislativo, em desfavor da experiência social dos destinatários da norma. Ou seja, o legislador, na onipotência do exercício de seus poderes pretensamente racionais, antecipa e “prevê” os efeitos da lei, mas ignora as suas consequências imprevistas (as unintended consequences foram objeto da atenção de John Locke, Adam Smith e, mais recentemente, no século XX, foram estudadas profundamente pelo sociólogo Robert K. Merton).

Então, seria de bom alvitre que a classe patronal pudesse perceber que muito da Reforma Trabalhista simplesmente “não vai pegar”, porque há ali dispositivos que são despauterados e estão completamente dissociados da realidade social e das práticas econômicas do mundo do trabalho (alguém lembra que fim levaram as Comissões de Conciliação Prévia e o contrato a tempo parcial da era FHC? Sim, eles estão em vigor mas viraram “letra morta”). E antes que algum incauto tripudie sobre o que acabamos de afirmar, sacando do bolso a batida frase “só mesmo no Brasil há leis que pegam e que não pegam”, lembramos que em qualquer lugar do mundo há leis “que pegam” e outras “que não pegam”. No Brasil, nos Estados Unidos, na Suécia, em Botsuana ou na Papua Nova Guiné. Basta que a lei seja ruim e inadequada à realidade e ela será rejeitada (os americanos chamam isto de backlash). A esse respeito, recomendamos o livro do Professor Lawrence M. Friedman, da Universidade de Stanford na California: Impact — How Law Affects Behavior (2016, Harvard University Press, 336 p.). Ele explica nesta obra quais são os fatores que levam a eficácia ou ineficácia das leis — em todo e qualquer sistema jurídico, inclusive e especialmente o dos Estados Unidos da América.

Aliás, tendemos a acreditar que a “lei que não pega” representa a fragilidade das instituições de uma nação. Mas isto é um grande erro. A “lei que não pega” representa a força da sociedade civil contra a tirania da maioria (Tocqueville); ela é uma vitória do cidadão contra a prepotência, o capricho, a demagogia e a corrupção do legislador. Vamos pensar apenas em dois exemplos de um país reputado pela força das suas instituições — os Estados Unidos. Basta que o leitor recorde e reflita sobre o que ocorreu no século XX com a “Lei Seca” e a legislação que criminalizou a homossexualidade naquele país: estas normas “não pegaram”, apesar de toda a brutalidade com que o Estado pretendeu fazê-las cumprir. A chamada Lei Seca foi introduzida por emenda constitucional, ou seja, com

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grande maioria e incontroversa legitimidade do legislador. Mas qualquer um que tenha assistido a um filme de gangster dos anos 20 sabe que ela foi um verdadeiro fiasco. Os bebuns americanos se recusaram a cumpri-la de todas as formas e ela teve várias consequências não previstas: o aumento da criminalidade, da corrupção e da evasão fiscal. Como a lei “não pegou”, os legisladores tiveram que voltar atrás e revogar a emenda. O mesmo se passou com as leis estaduais que criminalizavam a homossexualidade. Evidentemente, ninguém deixou de ser homossexual por causa destas normas, nem mesmo de manter relacionamentos homossexuais em razão da legislação democraticamente aprovada. As tentativas de dar cumprimento a estas regras foram ineficazes e só contribuíram para estigmatizar e aumentar o preconceito e a perseguição aos homossexuais, sem nenhum resultado positivo para a sociedade, até que tais normas foram declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte no caso Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003).

É óbvio que não estamos defendendo que nada da Reforma Trabalhista valerá, nem tentamos incitar a comunidade à desobediência civil. Apenas constatamos o que acontece com...

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