Reforma trabalhista e desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais

AutorVivian Ferraz de Arruda Salvador
Páginas61-69

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Vivian Ferraz de Arruda Salvador 1

Introducto

Com a Reforma Trabalhista, instituída pela Lei n. 13.467/2017, o incidente de desconsideracao da perso-nalidade jurídica previsto na processualística civil foi incorporado ao processo do trabalho, sanando dúvidas que pairavam sobre a aplicabilidade subsidiária desse instituto civilista no ramo processual trabalhista.

Propóe-se, com o presente estudo, apresentar aspectos do incidente de desconsideracao da personalidade jurídica e analisar os principais impactos de sua aplicacao na sea-ra do processo do trabalho, considerando, ainda, outras importantes alteracóes e inovacóes recentemente introdu-zidas na sistemática trabalhista que afetam, direta ou indi-retamente, a responsabilidade dos sócios por obrigacóes da pessoa jurídica que integram.

Personalidade jurídica

A pessoa jurídica nao tem existencia fora da seara jurídica. O Direito admite a personalizacao de determinados sujeitos de direito - que, na condicao de despersonalizados, só poderiam praticar atos a que estivessem explicita e juridicamente autorizados - para admitir-lhes a prática de atos jurídicos em geral, com excecao daqueles a que estejam expressamente proibidos2.

É nesse sentido que o artigo 45, caput, do Código Civil de 2002 dispóe que a existencia legal das pessoas jurídicas de direito privado inicia-se com a inscricao do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorizacao ou aprovacao do Poder Executivo. Assim, a pessoa jurídica adquire personalidade com a inscricao, em registro próprio, de seus instrumentos constitutivos, na forma da lei.

Como consequencia dessa ficcao jurídica, de sua persona-lizacao, a pessoa jurídica nao se confunde com as pessoas que a compóem, de modo que a sociedade empresária tem personalidade jurídica distinta e independente da de seus sócios. A personalizacao confere á pessoa jurídica titularidades negocial, processual e patrimonial, podendo, entao, como sujeito de direito autonomo, assumir um dos polos de relacóes negociais, demandar e ser demandada em juízo (capacidade processual) e responder com patrimonio pró-prio, inconfundível e incomunicável com os bens individu-ais de seus sócios, pelas obrigacóes que assumir3.

Assim, como decorrencia da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, o patrimonio particular de seus só-cios nao responde pelas dívidas da sociedade, salvo nos casos previstos em lei, consoante diccao dos artigos 790, II, e 795 do CPC/2015, na mesma linha dos artigos 592, II, e 596 do CPC/1973.

Observa-se que a norma processualista civil sujeita, de modo excepcional, o patrimonio dos socios á execugao por dívidas da sociedade, assegurando-lhes, por outro lado, o direito de exigir que primeiro sejam executados os bens da sociedade, devedora principal, na forma do art. 795, § 1º, do CPC/2015.

Nota-se, portanto, que a ordem processual civil brasileira - assim como a trabalhista, conforme se verá - absorveu a relativizacao da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. É nesta relativizacao que se pauta a teoria da desconsi-deracao da personalidade jurídica, por meio da qual se supera a personalidade jurídica da sociedade, episódica e temporariamente, para satisfazer o crédito do exequente, mediante a sujeicao do patrimonio dos sócios á execucao.

As teorias da desconsideracáo da perso-nalidade jurídica no direito brasileiro

A autonomia patrimonial da pessoa jurídica é, por vezes, utilizada como subterfúgio para a realizacao de fraudes e abusos de direito. Para coibi-las, a doutrina, notadamen-te nos EUA, na Inglaterra e na Alemanha, desenvolveu, a partir de decisóes jurisprudenciais, a teoria da descon-sideracao da pessoa jurídica ou disregard doctrine, pela qual se autoriza o Poder Judiciário a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, episodicamente, sempre que ela tiver sido utilizada indevidamente, e, com isso, a responsabilizar, direta, pessoal e ilimitadamente, o sócio por obrigacao que, originariamente, cabia á sociedade, a

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fim de resguardar interesses de terceiros vítimas da fraude ou abuso4.

Por apenas suspender a eficácia do ato constitutivo no caso concreto sobre o qual recai o julgamento, sem anular a personalidade jurídica em toda a sua extensao, permane-cendo a constituicao societária incólume para outros fins, a doutrina da desconsideracao preserva a pessoa jurídica, indispensável á organizacao da atividade económica, sem deixar de tutelar direitos de terceiros prejudicados, que com ela efetivaram negócios5.

No direito brasileiro, desenvolveram-se duas teorias acerca da desconsideracao da personalidade jurídica. De um lado, a teoria maior, advinda da disregard doctrine, condiciona o afastamento episódico dos efeitos da perso-nificacao ou a afetacao do patrimonio de sócio por obri-gacao da sociedade á verificacao de fraudes ou abusos de direitos cometidos por meio da personalidade jurídica. De outro lado, a teoria menor - com aplicacao difundida no direito do trabalho - permite afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, para atribuir obrigacao social a sócios ou ex-sócios solventes, mesmo quando eles nao agem culposa ou dolosamente, bastando que a personali-dade jurídica configure obstáculo á efetivacao do interesse tutelado pelo direito, como nas corriqueiras hipóteses de insuficiencia patrimonial da pessoa jurídica devedora.

No ordenamento pátrio, embora algumas leis esparsas, como a Lei n. 9.605/1998, que estrutura o Sistema de De-fesa da Concorrencia, e a Lei n. 12.529/2011, que dispóe acerca da responsabilidade por lesóes ao meio ambiente, prevejam hipóteses autorizadoras da desconsideracao da personalidade jurídica, merecem destaque as disposicóes constantes do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil de 2002, dada a aplicacao subsidiária ao proces-so do trabalho.

O CC/2002, em seu artigo 50, inspirou-se na disregard doctrine, ao autorizar que a regra da separacao entre o patrimonio da pessoa jurídica e os bens de seus sócios seja episodicamente afastada, com base em prova material do dano, quando configurado desvio de finalidade, pelo fato de o sócio ou administrador utilizar a pessoa jurídica para alcancar objetivo diverso do societário, ou confusao patrimonial, mistura do patrimonio social com o particular do sócio, hipóteses de abuso da personalidade jurídica6.

A Lei n. 8.078/90, por sua vez, foi uma das pioneiras a autorizar o órgao judicante pátrio a desconsiderar a per-sonalidade jurídica. Segundo inteligencia do artigo 28, caput e § 5º, a desconsideracao poderá ser judicialmente determinada caso haja, por parte da sociedade: a) abuso de direito, desvio ou excesso de poder, lesando consumidor; b) infracto legal ou estatutária, em detrimento do consumidor; c) falencia, insolvencia, encerramento ou ina-tividade, em razao de má administracao; d) obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores, pelo simples fato de ser pessoa jurídica7.

A cláusula extensiva constante do § 5º do artigo 28 do CDC autoriza a desconsideracao sempre que a persona-lidade jurídica configurar obstáculo ao ressarcimento de danos suportados pelo consumidor, independentemente da constatacao de má-fé, como na hipótese de simples insuficiencia patrimonial da sociedade ou de dificuldade na localizacao de bens societários penhoráveis. Assim, ao contrário do que preconiza o artigo 50 do CC/2002, des-necessária a demonstracao de culpa ou dolo, fraude ou abuso de direito, para que se desconsidere a personalida-de jurídica nas relacóes de consumo.

Fundamentos da desconsideracáo da personalidade jurídica no processo do trabalho

No direito do trabalho, a desconsideracao da persona-lidade jurídica, para a responsabilizacao patrimonial dos sócios, é comumente aplicada com fundamento no artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 50 do Código Civil Brasileiro.

Com lastro no artigo 28, caput, do CDC, o afastamento do véu corporativo no processo do trabalho respalda-se em tres hipóteses legais principais, mais frequentes, a saber: infracto de lei ou inobservancia de normas laborais que enseja condenacao judicial em obrigacao de pagar; encerramento ou inatividade da pessoa jurídica por má ad-ministracao; violacao do estatuto ou contrato social, evidenciada nos casos de atuacao oculta de pessoas, físicas e/ ou jurídicas, junto a sociedades corporativas, prática que, ao objetivar a obtencao de receitas aparentemente desvinculadas da fonte geradora dos recursos, corriqueiramente conduz, também, á confusao patrimonial, fundamento

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para a desconsideragao da personalidade juridica previsto no artigo 50 do CC/20028.

Nao obstante as hipóteses legais de infracao á lei, parali-sacao ou inatividade por má administracao, violacao de ato constitutivo e confusao patrimonial possam servir para autorizar o afastamento episódico do véu corporativo, aplica-se, na processualística trabalhista, sobretudo, a previsao mais abrangente contida no § 5º do artigo 28 do CDC, dada a especial semelhanca, nos aspectos de vulnerabilidade e hipossuficiencia, entre consumidor e trabalhador.

A similitude de princípios e finalidades entre direito do consumidor e direito do trabalho, ambos atentos á parte da relacao jurídica material e processualmente mais fraca, chancela a incidencia do artigo 28, § 5º, do CDC nas rela-cóes empregatícias, como medida destinada a assegurar a efetividade e o cumprimento das normas trabalhistas9.

Assim, com base, sobretudo, no preceito consumerista em comento, doutrina e jurisprudencia...

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