Reforma trabalhista e exigências para o estabelecimento súmulas de jurisprudência: O novo art. 702, Alínea 'f' da CLT

AutorFlávio da Costa Higa
Páginas272-276

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Ver Nota1

Não podemos fazer da lei um espantalho que se prepara para assustar as aves de rapina e, sempre com a mesma forma, acaba por se tornar o poleiro e não o terror das aves que com ele se acostumaram.? Shakespeare2

1. Introdução

Na medida em que se aproxima o fim da vacatio legis da Lei n. 13.467/2017, pululam editoriais midiáticos que acusam magistrados de boicotar a sua aplicação (http:// opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-reforma-trabalhista,70002034201), a ponto de afirmarem a existência de uma verdadeira “guerrilha trabalhista” (https://www1. folha.uol.com.br/opiniao/2017/10/1926959-guerrilha-trabalhista.shtml) que teria como suposto inimigo a nova legislação. Nesse cenário fantasioso, povoaria o imaginário popular um “gabarito hermenêutico”, que contém alguma espécie de oráculo da interpretação da norma jurídica do qual emana uma “revelação”, vertente unívoca e axiomática da verdade, que é “a lei como ela é”.

Esse raciocínio estapafúrdio só pode ter duas explicações (ambas igualmente inescusáveis): má-fé ou ignorância. Não se pode, por óbvio, desprezar a possibilidade de alguns juízes – mesmo porque eles existem, fazem barulho e arruínam a reputação de toda a classe –, por razões ideológicas ou mesmo desonestidade intelectual, sabotarem a aplicação desta e de outras leis. Daí, entretanto, lobrigar um movimento orquestrado por mais de 3.500 magistrados a fim de – deliberadamente – corromperem os pilares da democracia, vai a distância da Terra até a estrela Alpha Cygni.

O problema é que norma é resultado (e não objeto) de interpretação, de modo que ela ganha sentido e alcance a partir das discussões que surgem nos fóruns de debates e nas reflexões de cada magistrado, posteriormente traduzidas na jurisprudência dos tribunais, aos quais cabe dizer (no espaço de suas competências) o que a lei efetivamente modificou nas relações individuais e coletivas de trabalho e no direito processual do trabalho. Em um Estado Demo-crático de Direito (CF, 1º, caput), estruturado na harmonia e independência entre os Poderes (CF, 2º), o pressuposto é de que o Parlamento detém legitimidade para legislar e o Judiciário deve “respeito às escolhas legítimas do legislador” (STF - RE 760.931, Pleno, DJ 11.9.2017).

Com essa ressalva, tem-se muito a fazer. O texto normativo é apenas o “ponto de partida”. Resta toda a tarefa hermenêutica e “interpretar o direito é caminhar de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular” (STF -ADPF 153, Pleno, DJ 6.8.2010). Foi-se o tempo em que se apregoava que os juízes não eram senão “la bouche qui prononce les paroles de la loi, des êtres inanimés qui n’en peuvent modérer ni la force ni la rigueur” (MONTESQUIEU. 1748, p. 52).3

No presente estudo, pretende-se demonstrar o quanto será difícil – ou, até mesmo, impossível – operacionalizar os comandos relativos à alteração e/ou estabelecimento de súmulas de jurisprudência a partir da concepção de “lei como ela é”.

As alterações promovidas pela reforma trabalhista dificultam sobremaneira a operacionalização dos comandos relativos à alteração e/ou estabelecimento de súmulas de jurisprudência a partir da concepção de “lei como ela é”.

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2. O art 702, alínea “f” da CLT – Crivo de Constitucionalidade

A Lei n. 13.467/2017 deu nova redação ao art. 702, “f”, da CLT, verbis:

Art. 702. Ao Tribunal Pleno compete:

I - (...)

f) estabelecer ou alterar súmulas e outros enunciados de jurisprudência uniforme, pelo voto de pelo menos dois terços de seus membros, caso a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por unanimidade em, no mínimo, dois terços das turmas em pelo menos dez sessões diferentes em cada uma delas, podendo, ainda, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de sua publicação no Diário Oficial.

Da leitura do dispositivo, verifica-se que o legislador invadiu os domínios do funcionamento administrativo dos tribunais, determinando o modo como eles devem proceder a fim de editar súmulas e outros enunciados de jurisprudência. Referido comando apossa-se, de modo totalmente indevido, de agenda imbricada à autonomia administrativa constitucionalmente assegurada ao Poder Judiciário (CF, 99).

Essa iniciativa legislativa não é novidade em nosso ordenamento. Foi assim por ocasião do Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/1994), que continha regramento que alterava a ordem de sustentação oral pelo advogado (art. 7º, IX)4.

Questionada a regra perante a Suprema Corte, restou decidido que dentre as categorias vedadas ao legislador, em face do princípio da separação dos poderes, destacava-se “o postulado do autogoverno da Magistratura, que enseja aos Tribunais o poder de regular, com exclusividade, toda a matéria pertinente à organização e à definição da ordem interna dos trabalhos judiciários”. Isso porque “nenhum poder estranho aos Tribunais dispõe de legitimidade jurídico constitucional para regular, em sede normativa, a própria ordem dos trabalhos judiciários” (STF – ADI 1.105-7, Pleno, DJ 27.4.2001). Esse mesmo julgamento foi relembrado pela Suprema Corte em 2006, para reiterar que “nem o Poder Executivo e nem o Poder Legislativo podem editar normas sobre os trabalhos internos das Cortes Judiciárias” (STF, ADI 2.790-3, Pleno, DJ 12.5.2006).

E o exame minucioso da Lei Maior tornaria até despiciendo o pronunciamento da Suprema Corte, uma vez que o art. 96, I, “a” da CF é resoluto ao dispor que compete privativamente, aos tribunais, “eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos...

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