Reforma trabalhista: Homologação de acordo extrajudicial

AutorJúlio César Bebber
Páginas346-352

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Ver Nota1

1. Considerações iniciais

A Lei n. 13.467/2014 é um paradoxo em si. Ao mesmo tempo em que avança em algumas matérias, retrocede em muitas outras; ao mesmo tempo em que dispensa tratamento técnico-científico em alguns pouquíssimos dispositivos, peca por uma linguagem pobre, deficiente e nada técnico-científica em muitos outros.

Não é dessa característica geral da Lei n. 13.467/2014, entretanto, que iremos discorrer neste ensaio. Nele pretendemos nos ocupar, com o intuito de despertar o debate, do sistema de homologação de acordo extrajudicial entre empregado (ou ex-empregado) e empregador (ou ex-empregador), formalmente instituído no direito processual do trabalho mediante a inserção, na CLT: a) da alínea f ao art. 652; b) dos arts. 855-B a 855-E.

2. Jurisdição voluntária

Modernamente e de modo singelo, podemos definir jurisdição (do latim juris de jus = direito; e dictio de dicere = dizer) como a atividade, o poder e o dever estatal, exercidos por órgão independente e imparcial em todo o território nacional, com eficácia vinculativa plena, destinada a:

solucionar os conflitos de interesses mediante a declaração e/ou a realização forçada do direito;

tutelar interesses particulares.

A jurisdição, como se percebe, tem como finalidades:

  1. solucionar conflitos de interesses — mediante a emissão de uma sentença de mérito que declara (em sentido amplo) o direito e/ou mediante a prática de atos materiais que realizem forçadamente o direito (execução);

  2. tutelar interesses particulares — mediante a concorrência da vontade do Estado como condição para: o nascimento, validade ou eficácia de certos atos da vida privada; a formação, desenvolvimento, documentação ou extinção de uma relação jurídica; a eficácia de uma situação fática ou jurídica; o exercício de certos direitos de alta relevância social (embora não o suficiente para serem considerados de interesse público).

Ao atribuir às Varas do Trabalho a competência para “decidir quanto à homologação de acordo extrajudicial em matéria de competência da Justiça do Trabalho” (CLT, 652, f), a Lei n. 13.467/2014 formalmente instituiu uma modalidade especial de tutela assistencial de interesses particulares no direito processual do trabalho (a par da instituída no art. 233 da CF para o trabalho do rural), que até então não era admitida pela jurisprudência do TST:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. COMPETÊNCIA MATERIAL. JUSTIÇA DO TRABALHO. HOMOLOGAÇÃO DE ACORDO EXTRAJUDICIAL. Não compete à Justiça do Trabalho homologar acordo extrajudicial firmado entre empregado e empregador, haja vista a ausência de previsão legal. Precedentes do TST (TST-AIRR-1542-77.2012.5.04.0234, 4ª T., Rel. Min. João Oreste Dalazen, DJ 7.10.2016).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ACORDO. HOMOLOGAÇÃO. Na hipótese em exame, a parte agravante insurgiu-se contra a decisão que determinou o arquivamento do feito sem julgamento do mérito ante o reconhecimento da incompetência desta Justiça Especializada para chancelar acordo extrajudicial oriundo da relação de trabalho. Nada obstante, não prospera a pretensão recursal, uma vez que a jurisdição voluntária tal como ensina a melhor doutrina, mesmo quando exercida pelo juiz, detém natureza tipicamente administrativa. E sendo assim, entendo que da interpretação conjunta do art. 114 da Carta Magna, que fixa a competência desta Justiça Especializada combinado com os dispositivos consolidados presentes no Título VIII, Capítulo I, da CLT, que tratam da Justiça do Trabalho, no caso arts. 643/649, demonstram que, a jurisdição voluntária, consistente no exercício pelo Juízo da função administrativa de interesses privados, para sua validade, não está compreendida por esta Justiça Especializada, motivo pelo qual refoge à sua competência homologar acordos extrajudiciais, efetuados antes da interposição da competente ação. Agravo de instrumento improvido (TST-AIRR-758-08.2013.5.09.0661, 6ª T., Rel. Des. Conv. Américo Bedê Freire, DJ 29.5.2015).

Uma nota é indispensável diante de algumas vozes (como se vê na ementa acima reproduzida) que equivocadamente atribuem à jurisdição voluntária a natureza de ato administrativo, partindo da premissa de que a jurisdição necessariamente pressupõe conflito de interesses e decisão que o resolva.

A ausência de litígio e de decisão que o solucione não constituem premissas para negar o caráter jurisdicional dos atos de jurisdição voluntária. Mesmo nesta o Estado atua por meio de “um órgão imparcial e independente”, que tem o dever de respeitar “as garantias fundamentais do processo” (GRECO, 2010, v. I, p. 100). O que identifica a jurisdição não é o conflito de interesses ou a decisão que o resolva, mas a atuação do Estado por meio de órgão independente e imparcial.

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Araken de Assis também afirma que a “intervenção do órgão judiciário na autonomia privada ostenta inequívoca natureza jurisdicional”, sustentado, porém, em razões diversas. São elas: “(a) a existência de lide (v. g., na inter-dição) (...); (b) a distinção entre jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária repousa na matéria, e, não, nas características” (ASSIS, 2015, v. 1, p. 579).

3. Competência funcional

Ao mesmo tempo em que o art. 652, f, da CLT introduz a possibilidade de “homologação de acordo extrajudicial”, fixa as Varas do Trabalho como órgãos funcionalmente competentes.

Nada de inovador há nisso.

As Varas do Trabalho são competentes para processar e julgar originariamente as demandas trabalhistas em sentido estrito. Desse modo, são igualmente competentes para homologar os acordos extrajudiciais firmados pelos mesmos sujeitos que figurariam na demanda evitada.

4. Acordo extrajudicial

Acordo é o vocábulo utilizado para indicar a transação (DINAMARCO, 2009, p. 63), que possui natureza jurídica de contrato (bilateral ou sinalagmático) e está fundado na autonomia da vontade. Diante da existência (ou da possível ocorrência) de um conflito de interesses gerado pela dúvida acerca da natureza (validade ou eficácia) da relação jurídica ou de um direito, as partes ajustam suas diferenças e repartem o risco mediante concessões recíprocas, prevenindo ou pondo termo a uma demanda judicial (CC, 840).

Conceito mais técnico de transação pode ser encontrado em Plácido e Silva:

No conceito do Direito Civil, e como expressão usada em sentido estrito, transação é a convenção em que, mediante concessões recíprocas, duas ou mais pessoas ajustam certas cláusulas e condições para que previnam litígio, que se possa suscitar entre elas, ou ponham fim a litígio já suscitado. Assim, a transação, sempre de caráter amigável, fundada que é em acordo ou em ajuste, tem a função precípua de evitar a contestação ou o litígio, prevenindo-o, ou de terminar a contestação, quando já provocada, por uma transigência de lado a lado, em que se retiram, ou se removem todas as dúvidas ou controvérsias, acerca de certos direitos (PLÁCIDO E SILVA, 2005, v. II, p. 1.421).

Ou em Pontes de Miranda:

A transação é o negócio jurídico bilateral, em que duas ou mais pessoas acordam em concessões recíprocas, com o propósito de pôr termo a controvérsia sobre determinada, ou determinadas relações jurídicas, seu conteúdo, extensão, validade ou eficácia. Não importa o estado de gravidade em que se ache a discordância, ainda se é quanto à existência, ao conteúdo, à extensão, à validade ou à eficácia da relação jurídica; nem, ainda, a proveniência dessa, de direito das coisas, ou de direito das obrigações, ou de direito de família, ou de direito das sucessões, ou de direito público (PONTES DE MIRANDA, 1996, Tomo XXV, p. 117).

Ou, ainda, contemporaneamente, em Carlos Roberto Gonçalves:

No sentido técnico-jurídico do termo (...), constitui negócio jurídico bilateral, pela qual as partes previnem ou terminam relações jurídicas controvertidas, por meio de concessões mútuas. Resulta de um acordo de vontades, para evitar os riscos de futura demanda ou para extinguir litígios judiciais já instaurados, em que cada parte abre mão de uma parcela de seus direitos, em troca de tranquilidade (GONÇALVES, 2004, v. III, p. 539).

Sempre que o acordo for realizado anteriormente ao ajuizamento de demanda será extrajudicial (CC, 842, CPC, 784, IV). Se a transação, porém, ocorrer após o ajuizamento de demanda, será judicial (CC, 842, segunda parte; CLT, 876; CPC, 515, II e III), ainda que tenha sido “obtida no escritório de um dos advogados” (GONÇALVES, 2004,
v. III, p. 543), desde que homologado judicialmente.

4.1. Finalidade do acordo extrajudicial

O escopo do acordo (transação) é a “eliminação de litígio ou de inseguridade” (PONTES DE MIRANDA, 1996, Tomo XXV, p. 118), caracterizado pela controvérsia (dú-vida) razoável acerca da natureza (validade ou eficácia) da...

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