A reforma trabalhista na boca da magistratura

AutorAndré Constant Dickstein
Páginas19-24

Page 19

André Constant Dickstein

Verão/2018

Promotor de Justiça do MPRJ. Mestrando pela FDUL (Lisboa). Pós-Graduado em Gestão Ambiental pela UFRJ/PNUMA.

1. Introdução

Muito nos honra o convite para integrar a presente obra1. Nosso homenageado, o Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, é daqueles magistrados de carreira, de corpo e de alma. Pelas posições que ocupou e ocupa, sabe da relevância de uma judicatura livre e independente, como também sabe da relevância de um sistema recursal racional e eficiente, capaz de uniformizar entendimentos jurisprudenciais dissonantes.

No presente momento, há grande expectativa sobre a resposta judiciária à chamada “reforma trabalhista”, aprovada por meio da Lei Federal n. 13.467, de 13 de julho de 2017, com vigência iniciada em 11 de novembro do mesmo ano e já alterada pela Medida Provisória n. 808, de 14 de novembro de 2017, esta última já extinta. Neste contexto, surgem também críticas à instituição da Justiça do Trabalho, propondo-se sua extinção2 ou sugerindo-se uma parcialidade ideológica na raiz da sua composição3. Até mesmo o então Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, invocando a sua condição de “observador privilegiado”, permitiu-se acusar o próprio Tribunal e os seus pares de uma “tendência geral e constante na exegese que amplie sistematicamente o rol dos direitos trabalhistas, optando-se por deferir quase tudo e quase sempre o que o trabalhador venha a postular em juízo, a que título seja”, uma “tendência superlativamente protecionista”, a traduzir “voluntarismo jurídico, que transmuda a função do magistrado, de julgador para a de legislador”4.

Em resposta, representantes da magistratura trabalhista denunciam o “puro obscurantismo” de se tentar reduzir a atuação dos juízes à aplicação da literalidade da lei5. Por trás das provocações públicas, está em questão o tratamento judicial a ser dado à normatividade que emana da reforma trabalhista. O fiel cumprimento da letra da lei contrapõe-se às possibilidades de desenvolvimento judicial da nova lei laboral. Entretanto, sabe-se que, na quadra atual, a vida prática do direito não se esgota na literalidade da lei e, neste sentido, a discussão parece antiga e desgastada. Será?

O objetivo deste estudo é ultrapassar o embate ideológico que cerca as discussões sobre a nova lei trabalhista, para abordar as tensões democráticas que a sua aplicação enseja. Portanto, não será nosso tema a reforma trabalhista, em si mesma, mas sim um olhar sobre as implicações democráticas que a sua aplicação atrai para a magistratura. Em seguida, apresentamos evidências da atualidade da temática proposta. Na terceira parte, percorre-se, de forma sintética, o histórico das correntes jusfilosóficas do direito, com o fim de se identificar, sob variados ângulos, a problemática contemporânea que cerca a função jurisdicional. Na quarta parte, trata-se da

Page 20

crise da democracia representativa e da recolocação da questão democrática, por Pierre Rosanvallon, a partir das noções de imparcialidade, reflexividade e proximidade. Ao final, propõe-se que, na aplicação concreta da “reforma trabalhista”, o embate ideológico dê lugar a uma atuação jurisdicional imparcial, reflexiva e próxima do conjunto social.

2. Vozes do eterno retorno do mesmo6

Recentemente, esteve em discussão no Senado Federal o Projeto de Lei n. 280, de 20167, que pretendia alterar o enquadramento jurídico dos crimes de abuso de autoridade, tornando um juiz passível de punição criminal, caso conferisse uma interpretação da lei que fosse posteriormente revertida em instância superior.8 O tipo penal proposto ficou conhecido como “crime de hermenêutica” numa alusão às lições lançadas por Rui Barbosa, em parecer que tratava de isentar de responsabilidade o juiz Alcides de Mendonça Lima, processado criminalmente por reputar inconstitucionais dispositivos da Lei gaúcha n. 10, de 16 de dezembro de 18959. De outro ângulo, mas no mesmo sentido, o desenvolvimento de inteligência artificial para emular a função judicial na solução de conflitos está na ordem do dia,10 e remete à ideia de que o juiz seja ou possa ser “uma espécie de robô ou de calculadora eletrônica”11, sem margem para considerações próprias. Portanto, tanto ontem como hoje se põe em cheque o nível de vinculação do juiz à literalidade da lei ou, numa linguagem tecnológica, o nível de programação legal do juiz. No plano filosófico, a questão se articula com o fundamento de legitimidade do direito; no plano metodológico, com as suas fontes e técnicas de aplicação; no plano político, com a legitimidade democrática da função jurisdicional.

3. O primado da lei de qual lei?

A noção de “primado da lei” pode ser abordada por diversos ângulos, a depender do sentido que se atribua ao termo “lei”. Lei de Deus ou lei dos homens, lei da razão ou lei voluntária, lei natural ou lei positiva, lex ou jus são possibilidades de sentido que se apresentaram ao longo da história do direito, traduzindo distintas concepções filosóficas e metodológicas.

Sob matizes variados, a doutrina do direito natural atravessou mais de um milênio, iniciando-se no período da Antiguidade Clássica e minguando-se no século XIX.12 De um modo geral, para o jusnaturalismo existe sempre uma fonte externa e superior de onde emana o direito; um direito, aliás, de valia universal e imutável, que a lei dos homens não pode contrariar. No pensamento clássico, o Cosmos representava essa entidade metafísica capaz de comandar a natureza como um todo, aí incluído o homem. Era, pois, essa ordem cosmológica de onde emanavam as leis universais a servirem de parâmetro valorativo às leis humanas13. A tragédia “Antígona” de Sófocles é um paradigma desse contraste: a lei ocasional dos homens (representada pelas ordens de Creonte) não poderia violar as leis universais e imemoriais (invocadas por Antígona).14 15 Na Idade Média, o jusnaturalismo se articula com a religião católica, consistindo na doutrina de um direito natural identificado com a lei revelada por Deus. A legitimidade do direito estava assentada na teologia e have-ria, assim, uma lei natural conhecível por meio do reflexo da mente divina na criatura racional16. Santo Tomás de Aquino era “a base do jusnaturalismo católico”17, quando, ao menos na experiência ocidental, a fonte do direito natural foi deslocada do Cosmos para Deus e a compreensão do mundo passou a vincular-se, dogmaticamente, aos Dez Mandamentos e

Page 21

aos princípios morais da Bíblia. Já nos séculos XVII e XVIII, o período das luzes fazia deslocar, gradualmente, o fundamento divino de validade do direito para a razão humana18, atendendo, assim, ao movimento de se retirar o domínio da religião sobre a sociedade. O direito natural se assentava, então, em ditames autoevidentes revelados pela razão humana justa, não se confundindo com o direito voluntário dos homens19. Por conseguinte, a legitimidade das leis sociais se aferia na medida em que garantisse e protegesse os direitos naturais dos homens racionalmente reconhecíveis.

No século XIX, o Código de Napoleão (1804) se tornou o símbolo de um movimento que, na tradição europeia continental, procurou reduzir a termo, em forma de lei sistematicamente organizada, aquilo que seria a consagração da lei universal, conforme expressado pela razão humana20. Sob os ideais iluministas da Revolução Francesa21, a codificação de Napoleão foi o ápice do jusnaturalismo e, como tal, o início da curva descendente desse pensamento. Ao cristalizar em lei escrita os direitos naturais, o direito positivado ganhou proeminência. Afinal, “com a promulgação dos códigos, principalmente do napoleônico, o jusnaturalismo exauria a sua função no momento em que celebrava o seu triunfo”22. Paulatinamente, portanto, a autoridade superior do direito natural foi sendo transferida para a autoridade do parlamento e da lei escrita, alimentando-se uma tendência de “formalismo interpretativo”23. Neste contexto, notabilizam-se as passagens de Montesquieu: “No governo republicano, é da natureza da constituição que os juízes sigam a letra da lei. (...) os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados”24.

Portanto, dos juízes exigia-se nada mais que a aplicação literal da lei escrita (o “silogismo perfeito”25) como sinal de sua submissão ao primado da lei26. O apogeu dessa cultura jurídica formal-legalista se consagra na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen (1934)27, símbolo maior do juspositivismo28. A “pureza” da teoria corresponderia ao isolamento da ciência jurídica de outras fontes do conhecimento, como a moral, a filosofia, a sociologia e a política29. Deste modo, a cultura jurídica se voltava para a sua integridade científica e intrassistêmica (unidade, completude e coerência normativas), perdendo referenciais externos de valoração. Importavam mais os juízos formais de validade jurídica das normas que os juízos materiais do seu valor moral.30 Mesmo em versões mais recentes, o positivismo jurídico segue marcado pela noção de que a validade das normas jurídicas depende do seu procedimento formal de criação e não do conteúdo que veiculam31. Sob tal ângulo, portanto, ao aplicador do direito bastaria encontrar, no sistema normativo, a norma

Page 22

aplicável à situação fática, emoldurando esta naquela, segundo o método silogístico32. Para além disto, a aplicação do direito preexistente converter-se-ia em criação jurídica ex post facto – algo caro para a teoria da separação de poderes.33

Ocorre que o “sistema jurídico” apresenta inconsistências (indeterminações, ambiguidades, omissões, contradições e subjetividades), que ficaram sobejamente evidenciadas pela experiência do nazi-fascismo34. A legalidade pura e dura pode levar – como levou – a resultados desastrosos. Ou seja, a Teoria Pura do Direito...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT