Regime processual da ação direta no direito brasileiro

AutorGustavo de Medeiros Melo
Páginas119-179
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CAPÍTULO VI
REGIME PROCESSUAL DA AÇÃO DIRETA
NO DIREITO BRASILEIRO
1. INTRODUÇÃO
Foi visto no capítulo anterior que existem, no Direito brasileiro,
formas de intervenção da seguradora na relação processual que proporcio-
nam a colocação do terceiro em linha de confronto direto com ela. O
chamamento do segurador ao processo – seja o chamamento previsto no
Código de Defesa do Consumidor, seja o modelo de intervenção criado
pelo Código Civil, que também pode ser tratado como chamamento do
segurador – é a ferramenta processual mais condizente com a finalidade do
direito material, a viabilizar o funcionamento da ação direta do terceiro.
No presente capítulo, a ideia dessa vez é mudar o foco de obser-
vação. Trabalharemos com o acionamento direto da seguradora pelo
terceiro, investigando os possíveis canais de intervenção do segurado e
procurando sistematizar o regime processual da ação direta.
2. A AÇÃO DIRETA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Superior Tribunal de Justiça, já antes do atual Código Civil,
qualificou o seguro de responsabilidade como uma estipulação em favor
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GUSTAVO DE MEDEIROS MELO
de terceiro e, com isso, abriu caminho para as vítimas de acidentes auto-
mobilísticos (tráfego urbano de veículos e do transporte rodoviário de
carga e pessoas) acionarem a companhia seguradora com quem o cau-
sador do dano havia contratado a garantia.225
Pode-se dizer que, por mais de uma década, a jurisprudência do
STJ foi predominante não só na aceitação da ação direta, mas também no
aceitá-la de forma autônoma, voltada exclusivamente contra o segurador.226
Até o final do ano de 2011, por exemplo, havia a orientação segundo a
qual “o fato de o segurado não integrar o polo passivo da ação não retira da
seguradora a possibilidade de demonstrar a inexistência do dever de indenizar”.227
Por outro lado, o cabimento da ação direta, apesar de ter pavimen-
tado uma jurisprudência em torno dela, nunca foi um ponto pacífico nos
225 STJ: “Civil e Processual civil. Contrato de Seguro. Legitimidade ativa ad causam.
Beneficiário. Estipulação em favor de terceiro. Ocorrência. Art. 1.098, CC. Doutrina.
Recurso provido. I – A legitimidade para exercer o direito de ação decorre da lei e
depende, em regra, da titularidade de um direito, do interesse juridicamente protegido,
conforme a relação jurídica de direito material existente entre as partes celebrantes. II
– As relações jurídicas oriundas de um contrato de seguro não se encerram entre as
partes contratantes, podendo atingir terceiro beneficiário, como ocorre com os seguros
de vida ou de acidentes pessoais, exemplos clássicos apontados pela doutrina. III – Nas
estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa futura e indeterminada, bastando
que seja determinável, como no caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no
momento do sinistro. IV – O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do
contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a seguradora, para cobrar a
indenização contratual prevista em seu favor. V – Tendo falecido no acidente o terceiro
beneficiário, legitimados ativos ad causam, no caso, os seus pais, em face da ordem da
vocação hereditária” (4ª T., REsp 257.880-RJ, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.
03.04.2001, RSTJ, 168/377). No mesmo sentido: STJ, 4ª T., REsp 294.057-DF, Min.
Ruy Rosado de Aguiar, j. 28.06.2001, DJ 12.11.2001.
226 Jurisprudência não se confunde com um julgado ou poucos precedentes. Jurisprudência
é a orientação uniforme do tribunal (ou do órgão colegiado) que resulta de uma série
reiterada de precedentes formados no mesmo sentido. Cf. TARUFFO, Michele.
“Precedente e jurisprudência”. Revista de Processo. n. 199, p. 142. São Paulo: RT, setembro,
2011; ATAÍDE Jr., Jaldemiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e irretroatividade do direito
no sistema processual brasileiro: Os Precedentes dos Tribunais Superiores e sua Eficácia
Temporal. Lisboa: Juruá, 2012, p. 70; MELO, Gustavo de Medeiros. “Limites à
retroatividade do precedente uniformizador de jurisprudência”. Revista Forense. n. 407,
Rio de Janeiro: Forense, jan./fev., 2010, pp. 127-148.
227 STJ, 3ª T., REsp 1.245.618-RS, Min.ª Fátima Nancy, j. 22.11.2011.
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CAPÍTULO VI – REGIME PROCESSUAL DA AÇÃO DIRETA NO DIREITO...
meios acadêmicos,228-229 tampouco nas instâncias judiciárias. A questão
do litisconsórcio sempre esteve presente nas mesas de julgamento do
Superior Tribunal de Justiça.
Desde quando se consagrou o reconhecimento da ação direta nos
primeiros precedentes da Corte Superior,230 alguns ministros, em posição
minoritária, registraram voto divergente no sentido de ser necessária a pre-
sença do segurado na lide, sob pena de extinção do processo sem julgamen-
to de mérito. O fundamento invocado para essa solução era, e continua
sendo, a garantia do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV).231
Outras vezes esse entendimento chegou a prevalecer em acórdãos
da 4ª Turma,232 o que contrastava com a jurisprudência da 3ª Turma,
228 Na literatura nacional: ARMELIN, Donaldo. “A ação direta da vítima contra a
seguradora de responsabilidade civil: fundamentos e regime das exceções”. III Fórum de
Direito do Seguro José Sollero Filho. São Paulo: EMTS, 2003, p. 181; FARIA, Juliana
Cordeiro de. “O Código Civil de 2002 e o novo paradigma do contrato de seguro de
responsabilidade civil: a viabilidade do direito de ação da vítima contra a seguradora”. IV
Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. Contrato de Seguro: Uma Lei para todos. São
Paulo: IBDS, 2006, p. 398. Na Espanha: CONDE, Ma Ángeles Calzada. El Seguro de
Responsabilidad Civil. Navarra: Aranzadi, 2005, p. 132. No México: MAGALLANES,
Pablo Medina. “La acción directa del tercero en contra del asegurador en los seguros del
Responsabilidad Civil en México”. Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho. São
Paulo: Max Limonad, 2000, p. 250.
229 Já era preocupação de Mário Moacyr Porto em texto clássico de 1959: “A ressalva
tem toda procedência, pois o pagamento do seguro não exaure o direito da vítima,
quando se verificar que o seguro é insuficiente para satisfazer toda a indenização. Nesse
caso – é irrecusável – o segurado, autor do dano, responderá pelo remanescente. Mas,
apurada a responsabilidade do segurado na ação direta promovida contra a seguradora,
como seria possível impor ao segurado, estranho à lide, o pagamento do saldo de um
crédito que se apurou sem a sua audiência? A verdade é que a ação em referência é
subsidiária e dependente, em relação ao procedimento contra o autor do dano” (“Seguro
de responsabilidade: Ação direta da vítima contra a seguradora”. Ação de responsabilidade
civil e outros estudos. São Paulo: RT, 1966, p. 20-21).
230 STJ, 4ª T., REsp 257.880-RJ, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 03.04.2001;
REsp 294.057-DF, Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 28.06.2001; 3ª T., REsp 228.840-
RS, rel. p/ acórdão Min. Menezes Direito, j. 26.06.2000.
231 Cf. votos vencidos dos ministros Barros Monteiro e Aldir Passarinho Jr.: STJ, REsp
257.880-RJ e REsp 294.057-DF.
232 STJ, 4ª T., REsp 256.424-SE, rel. p/ ac. Min. Aldir Passarinho, j. 29.11.2005; REsp
943.440-SP, Min. Aldir Passarinho, j. 12.04.2011.

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