Regimes Internacionais de Previdência Social como Meio de Proteção do Trabalhador Migrante

AutorRachel de Oliveira Lopes - Alcindo Gonçalves
Páginas55-66

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Introdução

Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2000 e 2009 o Brasil recebeu 268,5 mil migrantes internacionais, com um aumento de 87,6% do fluxo imigratório em relação à última década1. Por outro lado, naquele mesmo censo também se estimou um total de 491.243 brasileiros residindo no exterior, número este, inclusive, muito inferior à estimativa do Itamaraty, para quem havia à época mais de 2,5 milhões de brasileiros vivendo fora das fronteiras nacionais2.

Sobressai de tais dados o necessário interesse em políticas migratórias internacionais cooperativas. De fato, estabelecido processo migratório de via dupla, verificam-se os motivos para entabular a reciprocidade do tratamento dispensado aos nacionais que vivem e trabalham no exterior, bem como aos estrangeiros em solo brasileiro, situação esta adequada à maior parte dos países do mundo, dada a fluidez proporcionada pela globalização.

Tenha-se em conta que o exercício da soberania, nas suas dimensões externa e interna, ao mesmo tempo em que justifica o anseio de proteção do emigrante, a partir do vínculo da nacionalidade3, respalda o amparo do imigrante residente entre as fronteiras domésticas, perante o qual se deve demonstrar capacidade de governo e de promoção de políticas públicas. Existe assim relação que tangencia os interesses de dois ou mais Estados e, muitas vezes, assenta bases de interdependência que exigem, contudo, a existência de regimes internacionais capazes de estabelecer a comunicação e a confiança suficientes à homogeneidade de condutas4 de gerenciamento dos fluxos migratórios.

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A literatura especializada5vem cada vez mais destacando as vantagens da migração a trabalho, que proporcionam remessas de fundos ao país de origem, que mantêm o consumo e a educação da família remanescente; o rejuvenescimento da população do país de destino, levando-se em conta que a população migrante é caracteristicamente jovem; a educação já provida e custeada no país de origem; o preenchimento de vagas de trabalho não ocupadas pela população do país de destino; o empreendedorismo característico dos trabalhadores migrantes, dentre outras.

Por outro lado, também se destaca a demanda por proteção de diversas ordens. Sabates-Wheeler e Wait (2003, p. 13) trabalham a existência de quatro vulnerabilidades dispostas aos migrantes: "temporal, spatial, socio-cultural and socio-political"6. A primeira diz respeito à transitoriedade ou à permanência da migração e aos efeitos daí advindos, bem como à duração do trânsito, ao momento da chegada ao destino, ao momento do retorno, entre outros7. A segunda diz respeito à mobilidade, à proteção enquanto em trânsito, ao isolamento físico, à exposição a desastres naturais etc.8. A terceira se refere à exclusão ensejada pelo confronto entre a carga cultural do migrante e os valores e costumes da sociedade de destino9. E a quarta, por fim, diz respeito às políticas restritivas dispostas aos migrantes, bem como à ausência de proteção institucional10, principalmente no país de destino.

Cada uma destas fragilidades, por seu turno, demanda proteção social específica, sendo certo que a seguridade social guarda direta relação com aquela última espécie, na medida em que diz respeito ao estabelecimento de arcabouço institucional que permita a manutenção da capacidade de prover a existência digna do migrante trabalhador, mesmo diante da ocorrência de determinados sinistros. Este é o foco do presente trabalho, que se destina à abordagem da construção de regimes internacionais de previdência social, encarados como subsistemas de seguridade, constituindo instrumentos de garantia recíproca da manutenção de direitos já adquiridos pelos nacionais dos Estados signatários dos tratados que os constituem.

Vale destacar que a seguridade social é direito que está no rol afirmado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), cuja disposição do artigo 2211 invoca expressamente o alinhamento entre o esforço nacional e a cooperação internacional para o tratamento da seguridade. Ao mesmo tempo, e dado que ali está inserido, é alcançado pela característica de universalidade dos diretos, e albergado pela lógica de proteção do ser humano, em detrimento da proteção do capital, de modo que a migração deve ser enxergada a partir da ótica da liberdade de circulação de pessoas e não do simples fluxo de capital e força de trabalho, que coisifica o homem e lhe restringe direitos.

Neste sentido, justifica-se a constituição de regimes internacionais de previdência social, inclusive à luz dos modelos de análise das relações internacionais, não só pelas suas próprias características, mas, principalmente, pela relevância dos direitos envolvidos, o que também fundamenta o tratamento da matéria aqui abordada.

Não obstante a noção ampliada de seguridade social esteja baseada no tripé saúde, assistência social e previdência social, o presente estudo tem o foco voltado apenas para este último, sem, contudo, descurar que o amparo à saúde e que as medidas de assistência também exigem estratégias necessárias à proteção do migrante

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trabalhador e, por isso mesmo, merecem tratamento específico e isolado, à parte do presente trabalho.

Por outro lado, toma-se por base o ordenamento jurídico nacional e salienta-se a relevância da participação do Estado brasileiro como integrante dos regimes internacionais de previdência, à luz das bases políticas de sua constituição e da teoria dos regimes internacionais. Neste sentido, a abordagem é procedida primeiramente pela evolução histórica da noção de previdência social em associação com os paradigmas constitucionais, até que, alcançado o paradigma atualmente abraçado pela República Federativa do Brasil, e justificando-se a partir daí a sua participação como signatário de regimes internacionais da espécie indicada, se passa à abordagem específica dos elementos constitutivos dos regimes já dispostos e aplicados ao Estado brasileiro.

1. A previdência social do migrante trabalhador e o estado democrático de direito

Desde os primórdios, os homens buscam formas coletivas de enfrentamento dos riscos e encargos inerentes à fragilidade de sua condição, mais ressaltada a partir da ruptura havida com a Revolução Industrial. A exposição humana às privações geradas pela impossibilidade de trabalho - seja pela incapacidade física muitas vezes originada de acidentes laborais, seja pela ausência de oferta de empregos - deu ensejo à contrariedade dos trabalhadores e à consequente "inquietação dos defen-sores do poder nos Estados com a insatisfação popular" (CASTRO E LAZZARI, 2006, p. 34). Neste sentido, após lenta evolução do sentimento de responsabilidade social pelo infortúnio alheio, e rompendo-se em parte com o ideário liberal de intervenção estatal mínima, o Estado foi forçado a abandonar sua postura de mero espectador da atividade econômico-social e a assumir, por meio da ordem jurídica, a incumbência de garantir através de prestações positivas melhores condições de vida aos economicamente mais frágeis.

A história aponta que o embrião da previdência social, tal como atualmente disposta, aparece no momento da transição do Estado de Direito para o Estado Social, como meio de distribuir de forma mais equitativa a obrigação de zelar pela existência humana. Até aquele momento, as práticas de seguridade se associavam muito mais à pura e simples assistência aos pobres ou ao âmbito privado e corporativo das guildas e confrarias e dos sistemas mutuários de modo geral (FAVARETTO, 2008, p. 5-6), nos quais "se colocava o ônus de poupar sobre o trabalhador, caso não quisesse ser reduzido à miséria, ou sobre o empregador, mas por mera liberalidade" (LOUZADA, 2014, p. 35).

Schweintz (1948, p. 4) alerta que not until well into the twentieth century [...], were there in large parts of the world planned and organized measures which the individual might use as a base in maintaining in the presence of vicissitude an income sufficient to provide a decent and healthful level of existence12.

É bem verdade, que o modelo bismarckiano13data ainda de 1883 e que ali já se apresentava a característica do tríplice custeio, em que se atribui ao Estado - em conjunto com trabalhadores e empregadores - parcela da responsabilidade de proteção dos segurados em seus infortúnios. Aquela perspectiva, todavia, ainda estava vinculada a propostas intervencionistas e massificadoras, numa tentativa política de firmar que "o trabalhador comum não desejava a revolução propriamente marxista, mas apenas segurança econômica para si e para a sua família, e que esta poderia ser melhor provida pelo Estado do que pelos seguros privados" (LOUZADA, 2014, p. 37). Ademais, era direito sequer formalizado constitucionalmente, e que só passou a ser encarado como fundamental na Constituição do México de 1917, também ainda sob os auspícios do Estado Social, que, como dito, pressupunha o povo como massa e não como conjunto de indivíduos plurais, além de introduzir, de modo claro, os direitos sociais no ordenamento constitucional pela primeira vez na história.

Neste momento, a cidadania como prerrogativa de acesso era encarada somente sob a ótica coletiva de destinatários de outorga estatal, e jamais sob uma ótica individual de sujeitos capazes de promover a criação, a modificação e a extinção de seus direitos, perspectiva somente encarada a partir do paradigma constitucional seguinte. E por certo que sob tal ponto de vista, em que as conquistas fundamentais ainda não eram abordadas à luz da universalidade e da pluralidade, não havia mesmo como se pretender a extensão de...

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