O regionalismo latino-americano no confronto com o modelo europeu: uma perspectiva histórica de seu desenvolvimento

AutorPaulo Roberto de Almeida
Páginas127-143

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1 Evolução do regionalismo nas duas regiões: breve síntese histórica

A integração econômica e política dos países latino-americanos tem uma longa história, quase tão longa quanto a do processo congênere da Europa ocidental, com a diferença substancial que, no Page 128 caso latino-americano, ela sempre foi muito mais conduzida no plano das intenções, ou promessas, do que no dos compromissos efetivamente cumpridos.1 As diferenças não radicam apenas nas metas fixadas e nos resultados alcançados, mas também nos instrumentos mobilizados para concretizar os respectivos projetos de integração, e no grau de adesão dos países membros aos objetivos fixados nos diferentes acordos políticos assinados para tal efeito.

Na Europa, o ponto de partida - bem mais de Realpolitik, do que animada por supostos "nobres ideais" - foi a "desnacionalização" e a administração supranacional dos setores considerados estratégicos para fins bélicos, quais sejam, o carvão e o aço (Tratado de Paris criando a CECA, 1951), seguido da extensão de regime jurídico similar para o conjunto dos setores produtivos, com a intenção de criar um mercado comum de bens, passando por uma liberalização integral dos intercâmbios até se alcançar uma união aduaneira completa (tratados de Roma, criando a Comunidade Econômica e a Euratom, 1957). Existiam claros motivos políticos para esse salto indiscutível em direção da supranacionalidade, ou seja, para a renúncia de soberania, assim como existiam pré-condições e um substrato econômico comum ao núcleo original de países membros.

Motivos e condições se vinculavam, ambos, ao contexto europeu pós-Segunda Guerra, em especial a chamada Deutsche Frage - a questão alemã, ou melhor, a da sua divisão e subordinação a cada um dos campos opostos durante a Guerra Fria -, e a necessidade de que os dois grandes contendores da "Segunda Guerra de Trinta Anos" (1914-1945), ocorrida basicamente entre a Alemanha e a França, encontrassem um modo de convivência aceitável para as tarefas de reconstrução, crescimento econômico e estabilização de seus regimes democráticos. A partir do Memorandum Monnet, o processo avança rapidamente para a definição de um esquema integracionista que praticamente eliminaria as fronteiras comerciais entre os países em um curto período de tempo.

Tais condições dificilmente existiam na América Latina dos anos 1950, como tampouco existia uma forte compulsão para a renúncia de soberania e para o estabelecimento de vínculos fortes de interdependência econômica, na medida em que a maior parte das economias da região possuía uma interface de comércio excêntrica à própria região, feita de laços privilegiados com as economias setentrionais, importadoras das principais commodities que os países latino-americanos remetiam ao exterior. Ainda assim, existiam complementaridades entre alguns dos países, notadamente no Cone Sul, o que justificava um experimento de integração em bases mais restritas.

Entretanto, em vista das características do regime multilateral de comércio em vigência exclusiva na época (Artigo 24 do GATT), essa tentativa não pôde assumir a forma de um acordo de preferências tarifárias entre os países diretamente interessados no estabelecimento gradual de um processo mais amplo de integração, como teria sido desejável (e provavelmente factível), mas teve, desde o início, de assumir o caráter de um acordo completo de liberalização comercial, o qual foi materializado sob a forma da Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (Tratado de Montevidéu, 1960).

Obviamente, não ocorreu nenhuma "desnacionalização" das atividades produtivas, nem a criação de órgãos supranacionais implicando cessão de soberania estatal. O processo de liberalização comercial recíproca avançou até o limite máximo permitido pelas competitividades nacionais respectivas - ou seja, redução tarifária em linhas de importação que eram "obrigatórias", e quase nenhuma concessão nos itens objeto do processo "substitutivo de importações" - sem que houvesse real intenção de avançar no caminho do desmantelamento dos programas nacionais de desenvolvimento econômico, todos fortemente introvertidos.

O fato é que a Alalc avançou pouco no caminho do livre-comércio, tendo alguns países mais comprometidos com a ideia da integração explorado a possibilidade de avançar mais rapidamente, segundo um modelo tendencialmente "europeu" no plano institucional. Tal foi a origem do Grupo Andino (Pacto de Cartagena, 1969) que pretendeu formular políticas comuns nos mais diversos campos - industrial, agrícola, tecnológico, obviamente comercial - de atuação setorial dos países membros, com algum grau de "supranacionalidade" embutida nos dois órgãos que deveriam supostamente guiar o processo: "Junta" (um simulacro de Comissão) e o Tribunal Andino, dotado de poderes teóricos, mas sem real eficácia sobre as infrações nacionais às metas fixadas no projeto de integração.

O Chile da era Pinochet abandonou (em 1975) o Grupo Andino por não pretender impor maiores constrangimentos estatais ao setor privado da economia ou afugentar o investimento direto estrangeiro. No resto da região, os projetos de integração foram sendo colocados em segundo plano, seja em virtude de crises episódicas - petróleo, dívida externa -, seja em função da orientação Page 129 estreitamente nacionalista e autárquica dos regimes autoritários que dominavam a política nacional em muitos países. Apenas com a volta da democracica, em meados dos anos 1980, foi possível dar novo alento ao processo de integração, desta vez marcado pela modalidade especificamente sub-regional dos novos projetos.

Entretempos, ao não ter realizado o seu objetivo da zona de livre-comércio continental, a Alalc foi substituída pela Associação Latino-Americana de Integração (Tratado de Montevidéu, 1980), que, a despeito do nome mais ambicioso, passou na verdade a representar nada mais do que o quadro jurídico formal - já ajustado às disposições mais flexíveis da "cláusula de habilitação", da Rodada Tóquio (1979), antes que aos requerimentos mais estritos do Artigo 24 do GATT - de uma vasta área de preferências tarifárias, feitas de acordos bi, tri ou plurilaterais, congregando apenas interesses limitados de algumas poucas linhas produtivas sob a forma de acordos de alcance parcial ou de "complementação econômica" (um eufemismo para ajustes de divisão de mercados entre empresas, geralmente multinacionais, dominando mercados nacionais). A Aladi tampouco conseguiu avançar decisivamente no caminho da integração continental, tendo sido submetida à dupla competição dos projetos sub-regionais de integração - dentre os quais o mais importante foi e continua sendo o que congrega o Brasil e a Argentina - e da proposta dos Estados Unidos em prol de uma "área hemisférica de livre-comércio", ou Alca.

O processo Brasil-Argentina, iniciado em 1986 e consolidado sob a forma de um tratado para a formação de um mercado comum bilateral em dez anos (Tratado de Integração, 1988), foi "acelerado" pela Ata de Buenos Aires (1990), que automatizou o ritmo da liberalização tarifária e reduziu à metade os prazos acordados no tratado de 1988, dando assim novo ímpeto à ideia de um mercado comum completo. Os mecanismos definidos para tal meta eram intergovernamentais e assim permaneceram quando se passou do plano bilateral para o quadrilateral, ao se decidir pela adjunção do Paraguai e do Uruguai ao processo iniciado bilateralmente.

O Tratado de Assunção, criando o MERCOSUL (1991), reproduziu ipsis litteris os dispositivos da Ata de Buenos Aires no que se refere aos mecanismos e aos instrumentos para a formação de um mercado comum, definido como uma zona de livre-comércio completa - ao serem reduzidas a zero as barreiras tarifárias e não-tarifárias num espaço de quatro anos -, agregada de uma Tarifa Externa Comum, o que caracterizaria a união aduaneira a ter início em 1995.

Paralelamente, o Grupo Andino opera uma reversão de seu antigo projeto de integração profunda para objetivos meramente comerciais; o grupo também tenta converter-se em união aduaneira, ideia consagrada na sua transformação, em 1996, em uma Comunidade Andina de Nações (CAN), sem maior efetividade, porém, em vista da recusa de alguns membros em aderir à Tarifa Externa Comum e a outros elementos constitutivos da unificação aduaneira. MERCOSUL e CAN iniciaram as discussões para a conformação de uma zona de livre-comércio regional em 1998, processo que seria concluído apenas em 2004, ainda assim com inúmeras exceções e "peculiaridades" bilaterais.

O MERCOSUL conheceu forte impulsão nos seus primeiros oito anos de existência, mas não conseguiu concretizar o mercado comum prometido no artigo 1º do Tratado de Assunção, ou, nem sequer, completar os requisitos da união aduaneira, a começar pela definição de um código e pelo estabelecimento de uma autoridade aduaneira única. Ele enfrentou crises e retrocessos a partir de 1999, quando ocorreu a desvalorização e flutuação da moeda brasileira e deu-se o esgotamento do modelo cambial argentino, baseado na plena conversibilidade e na paridade fixa com o dólar.

Seguiu-se um declínio temporário dos fluxos de intercâmbio e o desestímulo à continuidade da liberalização recíproca, com introdução de salvaguardas unilaterais da Argentina contra produtos brasileiros, a busca de soluções nacionais aos problemas de competitividade e o abandono prático dos projetos de coordenação das políticas macroeconômicas (tal como fixados em...

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