Regulação do sinistro: pressupostos e efeitos na execução do contrato de seguro

AutorBruno Miragem e Luiza Petersen
Páginas445-480
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Bruno Mira gem
Luiza Petersen
INTRODUÇÃO
O
contrato de seguro tem por função a garantia de interesse legítimo do segu-
rado contra riscos predeterminados (art. 757, CC). Estrutura-se a partir da
troca entre prêmio e garantia. Enquanto o segurado se obriga ao pagamento do
prêmio, o segurador garante interesse legítimo do segurado, relativo à coisa ou a
pessoa, contra riscos predeterminados, comprometendo-se a uma prestação even-
tual em caso de sinistro, isto é, de ocorrência do evento danoso previsto no con-
trato. Em geral, a prestação eventual do segurador corresponderá ao pagamento
de uma soma em dinheiro, compreendendo uma indenização nos seguros de dano
e a importância segurada nos seguros de pessoas.1
Uma vez ocorrido e avisado o sinistro, cabe ao segurador apurar os fatos para
o cumprimento da obrigação de garantia, o que se desenvolve pela regulação do
sinistro. A regulação do sinistro constitui o procedimento conduzido pelo segura-
dor para determinar a existência de sinistro coberto e a extensão da cobertura, com
a mensuração da extensão dos danos e da quantia a ser paga ao segurado. Nesse
sentido, será um dos momentos mais relevantes da execução do contrato, resul-
tando, ao final, no posicionamento do segurador quanto ao direito do segurado à
cobertura e, sendo o caso, no adimplemento.
1 MIRAGEM, Bruno. “O direito dos seguros no sistema jurídico brasileiro: uma introdução”. In: MIRA-
GEM, Bruno; CARLINI, Angélica (Coord.) O direito dos seguros. Fundamentos de direito civil, direito empresarial
e direito do consumidor. São Paulo: RT, 2015, pp. 25 e ss; PETERSEN, Luiza. O risco no contrato de seguro. São
Paulo: Roncarati, 2018, pp. 42-43.
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br u n o m i r a g e m lu i z a p e t e r s e n
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A despeito da sua importância, a regulação do sinistro não tem recebido
maior atenção no direito positivo brasileiro, diferentemente do que ocorre em
outros ordenamentos jurídicos, nos quais costuma ser objeto de alguma disciplina
legal.2 O Código Civil de 2002, no capítulo relativo ao contrato de seguro (arts. 757
a 802), não dispõe a respeito do procedimento. O mesmo se diga em relação ao
Código Civil de 1916 e ao Dec.-lei n. 73/66, este ainda em vigor. Observa-se, con-
tudo, que o Projeto de Lei do Senado n. 29/2017, que propõe a adoção de uma lei
específica para o contrato de seguro no direito brasileiro, lança fortes luzes sobre
a fase da regulação do sinistro, disciplinando-a em capítulo específico (“Capítulo
XIII – Da Regulação e Liquidação de Sinistros”), em um total de 16 dispositivos
(arts. 77 a 92).
Também na doutrina brasileira são raros os esforços de estudo e sistematiza-
ção da regulação do sinistro, o que, em parte, se justifica pela própria ausência de
interesse em geral pelo estudo do Direito dos Seguros. Nada obstante, verificam-se
importantes trabalhos a respeito do tema no direito brasileiro3.
O estudo da regulação do sinistro, contudo, apresenta desdobramentos prá-
ticos da maior relevância.4 A grande maioria dos litígios envolvendo segurado e
segurador surgem nesta etapa contratual, originados de divergências quanto aos
fundamentos da negativa de cobertura ou quanto ao valor apurado dos danos.
Ademais, a regulação do sinistro constitui o momento mais delicado do contrato
de seguro, no qual o segurado, muitas vezes, se encontra em uma posição de maior
2 Assim ocorre, por exemplo, na lei do contrato de seguro da Alemanha (§31, §82, §84 e §85 da Versi-
cherungsvertragsgesetz – VVG),na lei do contrato de seguro de Portugal (arts. 50, 102 e 104 do Decre-
to-Lei n. 72/2008), na lei do contrato de seguro da Espanha (arts. 18, 28 e 29 da Ley n. 50/1980) e na lei
de seguros da Argentina (arts. 46, 49, 51, 56 e 57 da Ley de Seguros n. 17.418, de 1967).
3 Neste particular, destaca-se a “Regulação de Sinistro”, de Ernesto Tzirulnik como obra no tema: TZIRUL-
NIK, Ernesto. Regulação do sinistro. 3. ed. São Paulo: Max Limonad. 2001. Merecem registro, igualmente:
AGUIAR JÚNIOR, R. Ruy Rosado. “Seguro regulação: a função do regulador e a boa-fé”. In: LUPION,
Ricardo; ARAÚJO, Fernando (Coord.). 15 anos do Código Civil: direito de empresa, contratos e sociedades. Porto
Alegre: Fi, 2018, pp. 179-195; THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato de seguro e a regulação
do sinistro. IBDS, Belo Horizonte, maio 2004. Disponível: http://www.ibds.com.br/artigos/OContrato-
deSeguroeaRegulacaodoSinistro.pdf. Acesso em: mar. 2020.; MARTINS COSTA, Judith. Boa-fé e regu-
lação do sinistro. In: VII Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho – IBDS. Lei de contrato de seguro:
solidariedade ou exclusão? São Paulo: Roncarti, 2018, pp. 201 e ss; MELO, Gustavo de Medeiros. “O pedido
de reconsideração nos processos de regulação do sinistro”. Revista brasile ira da advocacia. vol. 2, n. 6, ju l.-set .
2017, pp. 43-50.
4 Examinamos alguns deles em vista da disciplina proposta no Projeto de Lei do Contrato de Seguro:
MIRAGEM, Bruno. “Os direitos do segurado e os deveres do segurador no direito brasileiro atual e no
projeto de lei do contrato de seguro (PCL 29/2017) exame crítico”. In: VII Fórum de Direito do Seguro
José Sollero Filho – IBDS. Lei de contrato de seguro: solidariedade ou exclusão? São Paulo: Roncarti, 2018, pp.
224 e ss.
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vulnerabilidade, não apenas frente ao controle que o segurador detém sobre o
procedimento e maior poder econômico, notadamente no âmbito das relações de
consumo, mas especialmente frente às perdas geradas pelo sinistro, que podem ter
reflexos patrimoniais ou extrapatrimoniais.
Igualmente, como uma etapa determinante do contrato, a regulação do sinis-
tro pode dar margem a abusos por ambas as partes. Da parte do segurador, con-
siderando que este regula o que ele mesmo irá pagar, verifica-se a existência de
toda uma rede de incentivos para a apuração de um valor a menor ou para a busca
de um fundamento para a negativa da cobertura. Da mesma forma, sua expertise
e domínio sobre o procedimento, somada à posição de maior poder econômico,
pode dar margem para eventuais abusos, como a protelação do procedimento ou
a omissão de informações. Da parte do segurado, do mesmo modo, não raro, veri-
ficam-se condutas abusivas, envolvendo desde o aviso tardio do sinistro, muitas
vezes visando ocultar eventual fraude, até a omissão de informações e documentos
importantes à apuração dos fatos, condutas estas facilitadas pelo fato de figurarem
como gestores do risco, possuindo, em geral, o domínio das informações relevan-
tes a respeito do sinistro.
A ausência de disciplina legal a respeito da regulação do sinistro desafia o
intérprete e o aplicador do direito frente aos problemas práticos que podem sur-
gir nesta fase de execução do contrato. Deste modo, torna-se objeto de disposições
contratuais e de normas administrativas emitidas pelo ente regulador. Entretanto,
tratam predominantemente de aspectos formais do procedimento, deixando em
aberto questões substancias. Apesar das múltiplas fontes normativas que com-
põem o Direito dos Seguros no sistema brasileiro5, percebe-se a falta de regras
claras e estáveis sobre esta importante etapa da execução do contrato de seguro,
demandando intensa atividade de interpretação e integração. Em especial, com a apli-
cação do princípio da boa-fé e a definição, a partir dela, de modelos de conduta ade-
quados ao interesse útil das partes.
Deste modo, busca-se identificar, neste estudo, os pressupostos e efeitos da regu-
lação do sinistro como parte da execução do contrato de seguro. Na primeira parte
serão apresentados os fundamentos da regulação do sinistro, assim como a delimita-
ção da sua função e natureza jurídica dentro do processo obrigacional que envolve
5 PETERSEN, Luiza. “Diálogo das fontes e interpretação sistemática no direito dos seguros”. In: MAR-
QUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Coord). Diálogo das fontes: novos estudos sobre a coordenação e apli-
cação das normas no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. pp. 349 e ss.
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