A regulacao juridica para alem de sua forma ocidental de expressao: uma abordagem a partir de Etienne Le Roy/Legal regulation beyond the western form of expression: an approach based on Etienne Le Roy.

AutorFilho, Orlando Villas Boas

Consideracoes Iniciais

Apesar de pouco discutida no Brasil, a obra de Etienne le Roy proporciona uma instigante contribuicao para a analise da regulacao juridica. Seu conceito de juridicidade (juridicite) permite que a abordagem do fenomeno juridico se descentre das representacoes que, de modo hegemonico, orientam as construcoes teoricas que lhe sao dirigidas. (2) Nesse sentido, possibilita que se discuta o direito a luz de um enfoque essencialmente intercultural e, enquanto tal, como uma expressao singular da regulacao qualificavel como juridica. (3) A nocao de juridicidade, concebida como algo que engloba o direito, fornece a possibilidade de enfoca-lo como um folk system que nao pode ter a pretensao de universalidade que lhe e atribuida. (4) Assim, o presente artigo tem por finalidade expor, em linhas gerais, o modo pelo qual essa abordagem, ao descentrar-se das figuracoes tendencialmente ocidentalizantes e etnocentricas do direito, permite situa-lo como um caso especifico em meio a uma regulacao mais ampla.

Etienne Le Roy refuta qualquer definicao a priori do que seria a regulacao qualificavel como juridica, enfatizando que nao e possivel compreender o direito (enquanto forma especifica de concrecao da juridicidade) e o Direito (como fenomeno juridico) a partir de postulacoes preestabelecidas. (5) Assim, em diversos momentos, Le Roy corrobora a perspectiva de Norbert Rouland, segundo a qual o direito nao seria passivel de ser descrito, mas apenas pensado. (6) Alinhando-se a autores com Raimon Panikkar e Robert Vachon, Etienne Le Roy insiste na nao universalidade da forma concreta de expressao assumida pela juridicidade na tradicao ocidental e das categorias mobilizadas para descreve-la. (7)

Nota-se, assim, que a perspectiva de Etienne Le Roy consigna uma analise da regulacao juridica que evita o risco, sublinhado por Louis Assier-Andrieu (2000), de afirmar dogmaticamente o que e o direito--ou assumir implicita ou sub-repticiamente um conceito de direito ja existente--para, a partir dai, nutrir com descricoes empiricas o campo determinado por essa presciencia e, em ultima analise, fazer essa conceituacao coincidir com as formas de regulacao que, no quadro categorial das sociedades ocidentais modernas, seriam qualificaveis como expressao do fenomeno juridico. Ao sublinhar o potencial heuristico da abordagem antropologica acerca da regulacao juridica, Assier-Andrieu ressalta justamente a necessidade de uma analise descentrada das categorias e das representacoes ocidentais para que nao se incorra em uma imposicao etnocentrica destas a outros contextos. (8) Ora, e justamente o que enfatiza Le Roy (1990) ao sublinhar a importancia da "hermeneutica diatopica" de Raimon Panikkar para a apreensao da diversidade de horizontes culturais e de valores fundadores dispares que orientam distintas tradicoes juridicas. (9)

Nesse sentido, verifica-se, em perspectivas como a de Le Roy e a de Assieur-Andrieu, uma clara afinidade com a classica observacao de Pierre Clastres acerca do etnocentrismo como um "obstaculo epistemologico" a ser enfrentado pela abordagem antropologica. (10) Evidentemente que a alusao a essa afinidade nao implica anular as distancias existentes entre Clastres e Le Roy. (11) O que se visa com ela e simplesmente sublinhar o aporte importante que a abordagem antropologica, a partir de suas mais diversas perspectivas, pode fornecer para superacao dessa especie de "beata ignorancia" a respeito da diversidade das formas de manifestacao da regulacao juridica que, de modo geral, parece orientar a visao dos juristas. (12)

Em sua analise sobre o poder, Clastres (2011) enfatiza o quanto o etnocentrismo constitui um entrave a compreensao das formas dispares de sua manifestacao que nao reproduzem a concepcao hierarquica que concretiza sua figuracao ocidental. (13) Portanto, insistindo na necessidade de superar o "obstaculo epistemologico" imposto pelo etnocentrismo, de modo a realizar uma "revolucao copernicana" que conduziria a abordagem consequente da alteridade, Clastres rejeita conceber o Estado como "destino de toda sociedade" e, portanto, a considerar que as sociedades que nao dispoem da forma estatal de expressao simplesmente sofreriam de uma privacao ou de uma carencia.

Desse modo, Clastres (2011) critica vivamente a visao evolucionista que, a partir do "criterio da falta", caracteriza negativamente as sociedades desprovidas da forma estatal de maneira a concebe-las como expressao de arcaismo e, portanto, como sociedades marcadas pela incompletude, pelo inacabamento ou pela falta, ou seja, como meros "embrioes retardatarios das sociedades ulteriores". (14) Em lugar disso--refutando essa visao etnocentrica da carencia, da incompletude ou da privacao--, propoe conceber tais sociedades nao como "sociedades sem estado", e sim como "sociedades contra o estado". Assim, em sua perspectiva, a organizacao estatal nao poderia ser vista como a forma acabada de articulacao do liame social e, portanto, como o apice de um processo de desenvolvimento unilinear. (15) Nesse particular, a afinidade entre a perspectiva de Clastres e a de Le Roy e flagrante, sobretudo se se considera a critica que o segundo faz ao que denomina "logica da subtracao", decorrente da projecao do "padrao ocidental" de regulacao, pressupondo-o como universal ou universalizavel, para, a partir dele, avaliar as demais culturas juridicas. (16)

Nota-se, assim, que a critica de Clastres as perspectivas que, ao se referirem a sociedades que nao se articulam a partir da organizacao estatal, insistem na incompletude, na carencia ou na privacao apresenta paralelos evidentes com a abordagem antropologica do direito realizada por Le Roy. Se, como enfatiza Clastres (2011), o Estado nao pode ser concebido como o ponto culminante da evolucao social, de modo a engendrar a "divisao tipologica" entre "selvagens" e "civilizados", tambem o direito que dele emana nao pode ser visto como a unica expressao legitima da regulacao qualificavel como juridica, ou seja, nao pode ser tomado como um padrao universal que fixa o ponto de ancoragem da analise relativa a regulacao juridica. Alias, como observa Supiot (2005), o direito nasceu muito antes do Estado e e plausivel supor que sobrevivera a ele.

Essa breve alusao a perspectiva de Clastres, no contexto da presente analise, se da em virtude de dois motivos. Em primeiro lugar, porque se trata de um pensamento que obteve uma expressiva recepcao no Brasil e que pode fornecer aportes significativos, embora ainda nao explorados, para pensar criticamente a regulacao juridica. (17) Em segundo lugar, porque a critica de Clastres a tese etnocentrica da incompletude ou do inacabamento das sociedades desprovidas de Estado mantem uma clara afinidade com o projeto, inaugurado por Michel Alliot, de constituicao de uma "Science non-ethnocentrique du Droit" que, partindo do horizonte da Africa colonial, procurou rejeitar a tese de que o direito das sociedades chamadas de "primitivas" seria um direito imperfeito ou inacabado diante do direito escrito ocidental. Esse projeto de Michel Alliot, que ira nortear os trabalhos desenvolvidos no "Laboratorio de Antropologia Juridica de Paris", inclusive o de Le Roy, consiste em superar o etnocentrismo de modo a desenvolver uma genuina abordagem intercultural. Para tanto, mantendo afinidade com a perspectiva de Clastres, os estudos de autores como Michel Alliot, Etienne Le Roy, Christoph Eberhard e Gilda Nicolau procuram pensar com seriedade a questao da alteridade e da interculturalidade de modo a nao desqualificar a experiencia juridica de outras sociedades a partir de sua suposta inferioridade em relacao a forma de expressao da regulacao juridica no Ocidente moderno. (18)

Tendo por horizonte essas questoes, o presente artigo pretende examinar o modo pelo qual, em meio a teoria do "multijuridismo", proposta por Etienne Le Roy, a nocao de juridicidade, concebida como uma forma de regulacao que engloba o direito, fornece a possibilidade de descentrar a analise que a ele se dirige de figuracoes tendencialmente ocidentalizantes e etnocentricas, de modo a permitir uma abordagem genuinamente intercultural da regulacao juridica. Esse projeto, que mantem afinidade com a perspectiva de Pierre Clastres, detem um expressivo potencial critico para a problematizacao das abordagens ingenuamente monistas e marcadas por certo fetichismo estatalista do fenomeno juridico. (19)

Juridicidade: A regulacao juridica descentrada de sua forma ocidental de expressao

A preocupacao em desenvolver uma abordagem nao etnocentrica da regulacao juridica atravessa a obra de Le Roy. Mesmo antes da publicacao de seu livro Le jeu de lois. Une anthropologie "dynamique" du Droit, em 1999, suas analises ja procuravam enfatizar a especificidade da regulacao juridica na experiencia ocidental, valendo-se da distincao entre "Direito" e "direito(s)" para sublinhar a nao homogeneidade do "fenomeno juridico". Assim, em sua perspectiva, o "Direito", grafado com maiuscula, consistiria no sistema normativo produzido ou controlado estatalmente, ao passo que "direito" ou "direitos" seriam expressoes utilizadas para indicar manifestacoes singulares de principios de regulacao capazes de encontrar sua coerencia e "sancionabilidade" (sanctionnabilite) (20) em modos de organizacao muito diversos e variados. (21)

Diante disso, o termo "Direito" representaria um folk system que, como conjunto de normas sancionadas pelo Estado, expressaria apenas uma forma particular de experiencia, propria a um contexto historico e social--o Ocidente moderno--que, por esse motivo, nao poderia ser generalizada a guisa de universal. (22) Entretanto, apesar disso, nada e mais comum entre os juristas do que se aludir a suposta universalidade do direito, projetando para todas as sociedades as caracteristicas assumidas por ele na tradicao ocidental como se estas fossem generalizaveis. Alem disso, por influencia de uma visao monista recorrente, o "fenomeno...

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