A regulação jurídica da reprodução humana assistida no Brasil: um mosaico em movimento

AutorMarcos Catalan/Carla Froener
Páginas27-58
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A REGULAÇÃO JURÍDICA DA REPRODUÇÃO
HUMANA ASSISTIDA NO BRASIL:
UM MOSAICO EM MOVIMENTO
O Direito, enquanto fenômeno social, é pensado ao longo
deste trabalho como um instrumento com aptidão para reduzir
a complexidade que informa as mais diversas passagens da vida
humana, um mecanismo que se bem operado, poderá auxiliar a
mitigar a probabilidade de conf‌litos e (ou) o surgimento de danos
futuros1. Curiosamente, ao mesmo tempo, ele é violência e opres-
são, achatando liberdades que poderiam, na ausência de muitos dos
seus comandos normativos, virem a ser experimentadas de forma
indelevelmente positiva.
Ambas as faces do Direito saltam aos olhos nos parágrafos
adiante alinhavados.
Antecipe-se, antes de quaisquer outras considerações, que
as tentativas de regulação das práticas recortadas como lastro fe-
nomênico estruturante das ref‌lexões construídas ao largo desta
investigação científ‌ica podem ser identif‌icadas em algum ponto do
referido paradoxo. Durante a pesquisa identif‌icou-se serem diversos
os esboços de projetos de lei cuja estrutura inegavelmente analógica
chama a atenção em espaços decorados com uma série de elementos
gestados na revolução high tech, uma das características mais salientes
da Contemporaneidade.
Inúmeros são os projetos de lei, embora todos eles carreguem em
seu DNA (a) o fetiche legalista legado ao presente pelo positivismo
1. SCHWARTZ, Germano. A fase pré-autopoética do sistema luhmanniano. In ROCHA,
Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema
autopoiético do direito. Porto Alegre: LAEL, 2005. p. 77.
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A REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA NA SOCIEDADE DE CONSUMO
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jurídico normativista2 – ranço, infelizmente, ainda hoje impregnado
ao senso comum teórico – ao mesmo tempo em que parecem não
notar (b) o movimento aleatório de mutação social que não pode ser
domesticado por meio da edição de “leis nascidas velhas”3. Textos
que, na eventualidade de virem a ser aprovados, serão incapazes de
dar conta de boa parte dos problemas que pululam da fenomenologia
das relações sociais para assolar o mundo contemporâneo e promo-
verão manifestos retrocessos até que venham a ser reconhecidos
como uma afronta à Constituição brasileira.
O Direito, como é possível intuir, não pode seguir sendo pensado
como um repositório normativo passível de dominação e controle
por pessoas que creem ser bibliotecários aptos a transitar, sem que
se percam, pelos inf‌initos hexágonos que unidos uns aos outros dá
vida à mítica Babel de Borges4.
É preciso explicitar que o Direito que impregna os muitos
parágrafos desta obra foi pinçado em placas espalhadas por vastos
campos hermenêuticos. Neles, os princípios jurídicos devem ser
levados a sério e, ante a sua inegável força normativa, hão de ganhar
densidade quando transformados, por meio da força argumentativa,
em regras de conduta, portanto, em padrões de comportamento
avaliáveis e exigíveis em concreto.
A incerteza que pulula dos parágrafos anteriores ajuda a expli-
car o título que inaugura esta parte da obra e o intuito de desnudar,
sem nenhuma timidez, a existência de uma conjuntura normativa
bastante fragmentária no que toca à reprodução humana assistida
no Brasil. Um cenário regulatório tão recente quanto incipiente e
que, como antecipado, busca esconder boa parte da incerteza que
o colore, mesmo quando vê tribunais prenhes de demandas que
buscam decidir a quem deverá ser imputada a maternidade do ser
que acaba de nascer5 e de histórias – muitas delas marcadas por dor
2. STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica. São Paulo: Casa do Direito, 2017.
3. ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia jurídica e democracia. 2ª ed. São Leopoldo:
Unisinos, 2003. p. 197.
4. BORGES, Jorge Luis. Ficciones. [s.c.]: Biblioteca el mundo, 2001. p. 59-64.
5. Uma das primeiras lides sobre reprodução humana assistida levada a um tribunal
foi o caso do “Bebê M”, de 1988, julgado pela Suprema Corte de New Jersey, nos
Estados Unidos. Em 1985, o casal William e Elizabeth Stern buscou a contratação de
uma gestante por substituição, devido à impossibilidade de gravidez da esposa, que
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e angústia – narrando que crianças são tratadas como apátridas nos
países dos seus pais6.
Antecipe-se que, no Brasil, não há lei específ‌ica a tratar do
tema de maneira exclusiva, tampouco, minimamente detalhada7.
Até o momento, todas tentativas de edição de uma lei versando
sobre a reprodução humana assistida foram infrutíferas. O lacu-
noso contexto não impede pinçar, aqui e ali, dispositivos legais
enfrentava um grave problema de saúde. Por intermédio de um centro de tratamento
para infertilidade, foi escolhida Mary Beth Whitehead, mulher casada e mãe de dois
f‌ilhos. Na ocasião, Mary Beth f‌irmou contrato com o casal, comprometendo-se a ges-
tar o bebê concebido por meio de inseminação artif‌icial com o esperma de William
e abdicar de seus direitos maternos para que Elizabeth pudesse adotá-lo. Para isso,
receberia o valor de 10.000 dólares. Para a empresa intermediadora foram pagos 7.500
dólares. Após o nascimento do bebê, denominado Melissa, Mary Beth pediu para passar
uma semana com a criança, porém se recusou a devolvê-la após decorrido o período.
Frente ao impasse, os Sterns ingressaram com pedido de guarda provisória na justiça
estadual de New Jersey, conseguindo reaver Melissa. A Corte entendeu como válido o
contrato e determinou o f‌im dos direitos maternos de Mary Beth. Em grau de recurso
para a Suprema Corte de New Jersey, Mary Beth solicitou o direito à guarda enquanto
mãe biológica. No mérito, a Corte entendeu que o contrato era inválido, em analogia
à legislação de New Jersey que proibia expressamente o pagamento de valores aos pais
biológicos em situações de adoção e tratar de direitos indisponíveis. Os direitos de
maternidade só extinguiriam após o abandono intencional e não por via contratual.
Neste contexto, estabeleceu ser proibida a prática da maternidade por substituição
no Estado de New Jersey, constituindo-se precedente para os casos futuros. Tal prece-
dente mantém-se até hoje, de modo que a gestação por substituição continua proibida
no Estado. A Suprema Corte norte-americana nunca se pronunciou sobre casos de
reprodução humana assistida, de forma que não há um precedente nacional sobre a
matéria, delegando-se às legislações e precedentes estaduais. SUPREME COURT OF
NEW JERSEY. In Re Baby M. Disponível em: http://biotech.law.lsu.edu/cases/cloning/
baby_m.htm. Acesso em: 07 jul. 2015. RECHT, Steven M. “M” is for the money: Baby
M and the surrogate motherhood controversy. The American University Law Review,
Washington, D. C., v. 37, p. 1.103-1.050, 1988.
6. Casos ocorridos em tribunais franceses têm sido emblemáticos, principalmente pela
proibição da maternidade por substituição na legislação nacional. Em 2011, em caráter
jurisdicional, a Cour de Cassation francesa negou o registro de nacionalidade de dois
bebês nascidos nos EUA por meio de gestação por substituição, serviço contratado
por um casal homoafetivo francês. Em 2015, a Corte francesa aceitou o pedido de
registro de dois casais que conceberam os seus f‌ilhos na Rússia, mudando a orientação
até então existente. Apesar de hoje ser permitido o reconhecimento de nacionalidade
destas crianças nascidas no exterior, a gestação por substituição continua proibida na
França. VICE NEWS. France to legally reconize surrogate children as french citizens.
2015. Disponível em: https://news.vice.com/article/france-to-legally-recognize-sur-
rogate-children-as-french-citizens. Acesso em: 16 ago. 2016.
7. CATALAN, Marcos; SILVA, Giana de Marco Vianna da. Registro de biparentalidade
homoafetiva: um estudo de caso. Revista Síntese Direito de Família, n. 92, p. 09-23,
out./nov. 2015. p. 14.
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