A relação entre normas coletivas autônomas e legislação estatal: três notas sobre o modelo normativo brasileiro

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas45-57

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Os tempos presentes trazem de volta à centralidade do debate a temática da negociação coletiva de trabalho, os efeitos jurídicos de seus resultados, suas relações de temporalidade, hierarquia e eficácia subjetiva. Estamos diante de mais um paradoxo: o instituto jurídico volta à cena, quando seus atores relevantes perdem força, seus fundamentos político-filosóficos sofrem intensos e direcionados questionamentos, o discurso da crise econômica volta a ser ouvido e os sentidos do trabalho, do diálogo social e do pluralismo político se enfraquecem.

Os projetos de reformulação sistêmica do modelo de relações sindicais e coletivas do trabalho com estímulo e suporte à atuação dos atores sindicais profissionais que se apresentaram nas últimas décadas em perspectiva contra-hegemônica, pugnavam por uma valorização da autonomia coletiva com o objetivo de universalizar os direitos sociais, potencializar o controle sobre o poder do empregador, e democratizar a vida da empresa e do país. Em direção oposta está a alegada valorização da negociação coletiva decorrente de proposições político-governamentais1 e de decisões judiciais que, ao expressar giros paradigmáticos, reinterpretam regras e normas em desconsideração a princípios caros e orientadores do Direito Constitucional do Trabalho e mesmo do Direito Coletivo do Trabalho, ao construir uma nova hermenêutica decisória.

Distante da jurisprudência anterior adotada pelo Supremo Tribunal Federal2 no exercício do controle de constitucionalidade, que muito bem rechaçou a possibilidade de as convenções e acordos coletivos de trabalho transigirem em prejuízo de direitos fundamentais dos trabalhadores, julgados mais recentes admitiram como válidas normas contestadas contidas em acordos e convenções. Tais normas (a) estabeleceram cláusulas de transação e quitação individual e extrajudicial de direitos em Planos de Dispensa Voluntária3; (b) afastaram a regra legal que determina o pagamento de horas in itinere nos termos do art. 58, § 2º

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da CLT4; (c) deram a temas até então considerados como infraconstitucionais5 o status de questão constitucional de forma a possibilitar o exercício da jurisdição de controle pelo STF em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental sobre a redação da Súmula n. 277 dada pelo Tribunal Superior do Trabalho em 20126, com a determinação de suspensão de todos os processos em curso e efeitos de decisões judiciais proferidas com base na ultratividade das normas de acordos e de convenções coletivas7. Ao traçar um “breve histórico da prevalência da autonomia coletiva no STF”, o ministro relator Gilmar Mendes sublinha a proeminência da autonomia coletiva da vontade e da autocomposição dos conflitos trabalhistas por aquela corte8.

Afirma-se na nova narrativa decisória da Suprema Corte que no âmbito coletivo não há desequilíbrio de poder entre os sujeitos contratantes, de modo a afastar a necessária proteção construída pelo direito individual do trabalho9.

E que a “essência da negociação coletiva” ocorre a partir de “prestações sinalagmáticas acordadas com o empregador”, assentada em um direito do empregador à obtenção de um “devido contrabalanceamento”10. Estabelece ainda que, “dentro dos limites da razoabilidade”, há que se reconhecer a “especial relevância à autonomia da vontade no âmbito do direito coletivo do trabalho”, inclusive para afastar “direito assegurado aos trabalhadores pela CLT11.

Os giros hermenêuticos que os Tribunais empreendem no tempo, reconfigurando o Direito do Trabalho, em especial o direito coletivo, têm sido objeto das reflexões acadêmicas da autora há aproximadamente quinze anos. A influência do contexto político e econômico nacional no comportamento decisório das cortes superiores; o fenômeno da flexibilização jurisprudencial; a distinção entre autonomia privada coletiva e autonomia coletiva; entre autonomia da vontade e autonomia coletiva; a falaciosa valorização

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da negociação coletiva por interpretações que ampliam a eficácia dos pactos, como se autonormação, autotutela e auto-organização não fossem aspectos intrínsecos da auto-nomia coletiva, esta sim, fonte produtora de normatividade etc. são aspectos de estudos anteriores, cujos pressupostos analíticos permanecem válidos para compreender os tempos presentes12.

Não obstante, este artigo pretende contribuir de modo singelo com o atual debate sobre as relações entre as normas oriundas de fontes autônomas e heterônomas, e, mais especificamente, sobre a relação entre acordos e convenções coletivas e legislação estatal no Direito do Trabalho brasileiro13. Torna-se necessário fazer uma crítica desta nova narrativa decisória que coloniza o Direito do Trabalho pela lógica do direito contratual privado, desprezando a natureza normativa específica das normas coletivas. Para que se reconheça nos instrumentos coletivos pactuados a alma de lei em um corpo de contrato, é preciso abandonar as teses de que as negociações coletivas são meras transações nas quais se firmam compromissos mercadológicos recíprocos, bem como que os conteúdos pactuados estariam infensos ao controle judicial. Afinal, como normas jurídicas que são, devem ser interpretadas do mesmo modo que as demais normas trabalhistas, observando a hierarquia e a regra hermenêutica da norma mais favorável. Após um breve escorço teórico sobre negociação coletiva e os três modelos normativos de recepção de suas normas ao sistema jurídico, é apresentado o posicionamento clássico da doutrina brasileira sobre fontes, em especial sobre as relações entre as normas autônomas e heterônomas no Direito Brasileiro. Ao final retoma-se o problema da necessária incorporação da eficácia das normas coletivas em um em um sistema constitucional democrático, com o conceito de autonomia coletiva constitucionalizada, e realiza-se uma crítica das concepções que defendem a ampliação das relações supletórias.

1. Considerações teórico-metodológicas

A singularidade do Direito do Trabalho e sua capaci-dade de atingir funções de civilização das relações laborais, estabilização das relações sociais e políticas e controle duplo do poder econômico e da ação direta das classes trabalhadoras, conforme categoria cultural construída, se explicita por meio de múltiplos aspectos. Wolfang Däubler destaca como as principais dimensões decorrentes da especificidade do campo juslaboral: a) a proteção do trabalho e sua função mediata de conservação da ordem pela ‘pacificação das relações socioeconômicas’; b) a incidência sobre situações concretas de trabalho, com ampla diversidade de ocupações e rápidas transformações tecnológicas e produtivas, a exigir regulações específicas e criativas para problemas inéditos decorrentes da inserção na vida da empresa ou nas cadeias produtivas e como estrutura de suporte e estabilização normativa; e c) a incidência de normas constitucionais, que ao permear o Direito do trabalho, o estabilizam14.

Em consequência lógica às funções e especificidades do mundo do trabalho, o direito laboral se construiu por meio da combinação das esferas da autonomia coletiva e da intervenção estatal. Assim, quando há uma boa articulação das fontes provenientes das negociações realizadas diretamente pelos setores econômicos e sindicais e aquelas provenientes das instâncias estatais, preserva-se o necessário espaço para as regulações específicas (ou adequações setoriais). Assegura-se também a capacidade de os atores sociais e os instrumentos coletivos de trabalho incidirem sobre novos conflitos, com rapidez e atualidade, ao mesmo tempo que se estabelece um limite constitucional e legal e a criação de uma chave de leitura que permita examinar a validade das normas coletivamente pactuadas.

Na combinação entre negociação coletiva e inter-venção estatal, tem-se a explicitação da construção de um moderno ramo jurídico que é o Direito do Trabalho, síntese dos sistemas estatuário e contratual, oriundos das tradições jurídicas diferenciadas dos modelos romano-germânico e anglo-saxão, da common law e da civil law15.

Não à toa, ainda que em países nos quais o Direito é legislado por excelência, as fontes como modos de produção jurídica trabalhista são classificadas como heterônomas, se forem criações externas às partes, ou autônomas, elaboradas pelos próprios interessados. As fontes autônomas produzidas pelos interessados — como as convenções coletivas e os acordos coletivos de trabalho — são instrumentos privilegiados para especificar no mundo concreto das relações laborais as normas imperativas cogentes, consideradas patamar mínimo para a adaptação e para atualizar as regras às inovações das técnicas, processos produtivos e realidades cambiantes do mundo do trabalho. São recebidas e reconhecidas como válidas pela ordem jurídica instituída quando “arrostam o interesse público primário”16.

De um ponto de vista analítico, a clássica distinção proposta por Otto Kahn-Freund entre dois modelos de negociação coletiva, estático/contratual ou dinâmico/insti-

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tucional tem valor heurístico, pois permite compreender os modos de funcionamento de sistemas de relações laborais. No primeiro modelo, as partes se reúnem, negociam e se afastam depois de firmado um acordo. No segundo, há a criação de órgãos de negociação permanente. A distinção, segundo Fernando Valdés Dal-Ré, acaba por direcionar as investigações científicas nos campos metodológico e conceitual17.

Pesquisadores e juristas imersos em sistemas negociais dinâmicos buscam compreender os processos de negociação (bargaining unit); as organizações e entidades negociadoras (power organization) e as regras de procedimentos sobre tratativas (procedure rules). As...

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