Relações de trabalho lato sensu

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas331-377

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I Introdução

A relação empregatícia e a figura do empregado surgem como resultado da combinação, em certo contexto sociojurídico, dos cinco elementos fático-jurídicos já examinados.

Há, porém, outras relações de trabalho gestadas na dinâmica social muito próximas, do ponto de vista jurídico e social, à relação empregatícia, mas que com ela não se confundem. A diferenciação entre elas, às vezes, pode ensejar pesquisa fático-teórica tormentosa.

Em um primeiro plano, há um vínculo jurídico que, apesar de contar, do ponto de vista prático, com os elementos configuradores da relação de emprego, recebe da ordem jurídica uma excludente legal absoluta, que inviabiliza o contrato empregatício — trata-se da natureza pública da relação jurídica formada. É o que se passa com os servidores administrativos das entidades estatais de Direito Público.

Em um segundo plano, há outra relação jurídica, de natureza efetivamente privada, que também pode contar com os elementos integrantes da relação de emprego, sem enquadrar-se no tipo legal da CLT. É o que ocorre com o estágio, desde que regularmente formado e praticado. Ressalte-se, entretanto, que não se está, aqui, mais diante de excludente legal absoluta (como ocorrido acima), porém, essencialmente, apenas de uma presunção legal favorável ao estágio.

Neste plano, há outra relação jurídica que parece concorrer, do ponto de vista jurídico, com a relação de emprego — embora essa concorrência seja mais aparente do que verdadeira. Trata-se das situações envolventes a trabalhadores prestadores de serviço de cooperativas de mão de obra (ou cooperativas de trabalho, segundo a terminologia seguida pela Lei n. 12.690, de 2012). Também aqui não se está, definitivamente, perante uma excludente legal de relação de emprego.

Em outro plano, há diversas outras relações sociojurídicas que se diferenciam da relação de emprego em vista da falta de um ou alguns dos elementos fático-jurídicos componentes do tipo legal especificado no caput dos arts. e da CLT. É o que acontece, ilustrativamente, com as relações trabalhistas autônomas, eventuais e avulsas, sem se falar em outros vínculos também fronteiriços ao regulado pela CLT (representante comercial ou agente, motorista carreteiro proprietário de seu próprio veículo, motorista de táxi, etc.).

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Todos esses casos de relação de trabalho lato sensu são mais ou menos próximos da relação empregatícia; todos esses trabalhadores lato sensu tangenciam a figura jurídica do empregado. Mas, inquestionavelmente, todos eles, para o Direito, formam figuras sociojurídicas distintas da empregatícia, com regras, institutos e princípios jurídicos diferenciados regendo sua situação concreta.

Cabe, portanto, ao intérprete e aplicador do Direito, reconhecendo os elementos de aproximação entre as figuras comparadas, hábeis a situá-las em um mesmo gênero conceitual (o do trabalho humano prestado a outrem, onerosamente), identificar-lhes, ao mesmo tempo, a diferença específica, de modo a poder situar, sem equívocos, seu correto posicionamento no universo normativo existente1.

Presunção Jurídica — No Direito brasileiro existe sedimentada presunção de ser empregatício o vínculo jurídico formado — regido pela CLT, portanto —, desde que seja incontroversa a prestação de serviços por uma pessoa natural a alguém (Súmula 212, TST — editada em 1985). Essa presunção jurídica relativa (não absoluta, esclareça-se) é clássica ao Direito do Trabalho, em geral, resultando de dois fatores historicamente incontestáveis: a circunstância de ser a relação de emprego a regra geral de conexão dos trabalhadores ao sistema socioeconômico capitalista; a circunstância de a relação de emprego, desde o surgimento do Direito do Trabalho, ter se tornado a fórmula mais favorável e protegida de inserção da pessoa humana trabalhadora na competitiva e excludente economia contemporânea.

No Brasil, desponta a singularidade de esta antiga presunção jurídica ter sido incorporada, de certo modo, até mesmo pela Constituição da República de 1988, ao reconhecer, no vínculo empregatício, um dos principais e mais eficazes instrumentos de realização de notável bloco de seus princípios cardeais, tais como o da dignidade da pessoa humana, o da valorização do trabalho e do emprego, o da justiça social, o do bem-estar individual e social, o da segurança e o da subordinação da propriedade à sua função socioambiental. Com sabedoria, a Constituição percebeu que não se criou, na História do Capitalismo, nessa direção inclusiva, fórmula tão eficaz, larga, abrangente e democrática quanto a estruturada na relação de emprego.

Convergindo inúmeros preceitos constitucionais para o estímulo, proteção e elogio à relação de emprego (ilustrativamente: Preâmbulo; art. 1º, III e IV; art. 3º, I, II, III e IV; art. 5º, caput; art. 6º; art. 7º, caput e seus incisos e parágrafo; arts. 8º até 11; art. 170, caput e incisos III, VII e VIII; art. 193, todos

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do Texto Máximo de 1988), emerge clara a presunção também constitucional em favor do vínculo empregatício no contexto de existência de incontroversa prestação de trabalho na vida social e econômica.

II Excludente legal da figura do empregado - vinculação administrativa

Há importante situação concreta que evidencia a presença dos cinco elementos fático-jurídicos da relação de emprego entre trabalhador e tomador de serviços, sem que haja, juridicamente, esse tipo legal de relação — sem que haja, portanto, a figura do empregado. Trata-se de situação expressamente excepcionada pela Constituição (mais do que pela lei, portanto), que elimina a possibilidade jurídica de existência de relação de emprego, por enfatizar outro aspecto singular também presente na mesma relação.

É o que se passa com o servidor público sob regime administrativo — servidor do tipo estatutário ou sob regime jurídico único ou ainda sob o vínculo denominado função pública. Tais trabalhadores lato sensu não formam vínculo contratual privatístico com os entes estatais a que servem — mas vínculo de natureza pública, sob padrão normativo distinto, juridicamente incomparável.

Por essa razão, em face da natureza jurídica própria de seus vínculos (que é pública), torna-se irrelevante, para fins justrabalhistas, que sejam também pessoas naturais, prestando serviços com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação — não são eles, definitivamente, empregados2.

É evidente que não se está falando aqui do servidor celetista, isto é, aquele contratado por entidade estatal por meio do sistema jurídico da CLT. Este é empregado, como qualquer outro, tendo como empregador a correspondente pessoa jurídica de Direito Público. Tal situação, aliás, era muito comum antes de 1988, quando conviviam na administração pública os regimes de natureza estatutária, celetista e, ainda, o regime especial. Com o surgimento do regime jurídico único, previsto pela nova Constituição (antigo art. 39, CF/88), a tendência foi de se tornar apenas administrativa a modali-dade de admissão de servidores pelos entes estatais.

Curiosamente, em fins dos anos 1990, restabeleceu-se o incentivo à dualidade de regimes, viabilizando-se, outra vez, a contratação estatal de servidores por intermédio da CLT, conforme reforma administrativa implementada pela EC n. 19, de 1998.3

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Servidores Irregulares — Na ordem jurídica brasileira o padrão jurídico celetista corresponde à regra geral de contratação de trabalhadores por qualquer tomador, a quem cabe o ônus de evidenciar distinto enquadramento para o caso concreto examinado. Relativamente às entidades estatais de Direito Público, entretanto, por longo tempo prevaleceu a singularidade de poderem, mediante lei, realizar a escolha do regime jurídico regente de suas relações com os servidores, seja o administrativo, seja o celetista. Tratando-se de ente público (União, Estado, Distrito Federal ou Município) da administração direta, autárquica ou fundacional, a natureza do vínculo jurídico seria definida pela respectiva lei federal, estadual, distrital ou municipal.

Com a implantação do regime jurídico único previsto no caput do art. 39 da Constituição de 1988, a dualidade de regimes tenderia a desaparecer na prática real do segmento público do país. Porém, tendo a EC n. 19/1998 extirpado o RJU (extirpação que, longo tempo depois, foi considerada inválida pelo STF, em 2007, no julgamento da ADI/2135-DF, relatado pela Ministra Ellen Gracie, como já visto), ressurgiu o debate acerca do enquadramento jurídico dos servidores irregularmente admitidos pela entidade pública. Nesse contexto, a partir da EC n. 45/2004, entendeu a Justiça do Trabalho ser celetista o vínculo dos servidores públicos irregularmente admitidos, desde que a vantagem singular do ente público não tenha sido por ele efetivamente exercitada, ao admitir servidores fora dos rigores do estatuto público (Orientação Jurisprudencial 205, SDI-1/TST, em sua redação de
20.4.2005).

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal acabou por fixar compreensão distinta sobre a matéria, reiterando o caráter administrativo do vínculo do servidor com a administração direta, suas autarquias e fundações públicas, mesmo que irregular a admissão feita, caso o regime jurídico da respectiva entidade pública seja o administrativo. Com isso, afastou a competência da Justiça do Trabalho para...

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