Releitura do ensino jurídico à luz dos direitos humanos: a busca pelo efetivo acesso à justiça

AutorCarlos José Cordeiro e Josiane Araújo Gomes
Páginas345-356

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No Estado Democrático de Direito, em que tanto os Poderes Públicos quanto os particulares têm sua atuação no meio social vinculada à promoção da efetividade dos direitos humanos1, o Poder Judiciário deixa de estar distanciado da realidade social para se tornar efetivo partícipe da construção dos destinos da sociedade e do país, sendo, aliás, corresponsável pelo bem da coletividade. Nessa esteira, há a preocupação em assegurar o acesso à justiça a todos, na medida em que representa o objeto de transcendência do cidadão e, consequentemente, pressuposto de legitimidade de toda a ordem jurídica.

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De fato, com o surgimento do Estado Constitucional Democrático de Direito, há o reconhecimento da supremacia material e axiológica da Constituição, por ser esta responsável por consagrar, expressa ou implicitamente, os valores, os princípios e as regras de natureza imprescindível para a compreensão do fenômeno jurídico-social e, notadamente, para a promoção do mínimo existencial necessário ao desenvolvimento da personalidade humana; bem como consistir no núcleo e diretriz normativa para a interpretação e aplicação das normas infraconstitucionais. Nesse contexto, o Direito Processual sofre influência direta do texto constitucional, por ser o processo instrumento de inquestionável importância para a concretização dos direitos reconhecidos na Carta Magna, fenômeno este ao qual a doutrina atribui a denominação de neoprocessualismo2.

Com efeito, verifica-se que a Constituição, ao mesmo tempo em que consagra inúmeros direitos materiais fundamentais3, também arrola direitos e garantias processuais de observância obrigatória para a concretização dos primeiros, substituindo os Códigos de Processo na centralidade do ordenamento processual. Nesse sentido, o processo se volta à tutela de uma ordem de princípios e direitos essenciais, de intensa carga valorativa, que se sobrepõe aos interesses dos litigantes e que, em seu todo, busca a realização do bem comum e da pacificação social.

Aliás, no Brasil, a Constituição Federal, ao prever, juntamente com outras garantias, a impossibilidade de a lei excluir da apreciação do Poder

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Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), acabou por consagrar o direito ao acesso à justiça e, por consequência, o direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, célere e efetiva. Destarte, o processo representa o instrumento democrático por meio do qual o Estado exerce o seu poder jurisdicional, cujo objetivo não se exaure nos interesses individuais das partes na solução do litígio, por também buscar promover a função social da ordem constitucional em vigor.

Desse modo, vale dizer que o termo acesso à justiça4não se restringe somente à noção de acesso ao Poder Judiciário e às suas instituições, por também abranger uma ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano, que não se limita apenas ao ordenamento jurídico processual. Assim, o conceito de acesso à justiça é muito mais amplo que o simples acesso ao processo com intuito de buscar a solução de seu litígio; representa, na verdade, a "viabilização de acesso à ordem jurídica justa".5Ocorre que, não obstante a grandiosidade do alcance da expressão "acesso à justiça", o efetivo acesso ao aparato judicial é reconhecido como o maior instrumento formal para a persecução de uma ordem jurídica justa. Com efeito, o processo judicial se exterioriza como um dos mecanismos mais seguros e viáveis na busca do acesso à justiça, compreendendo esta expressão, conforme já foi dito, em seu viés mais significativo, qual seja, o acesso ao aparato judicial.

Assim, considerando a inegável importância do processo judicial, ele não deve ser visto como um fim em si mesmo, mas sim deve atender aos fins sociais e políticos a que se destina. Deve o processo, portanto, ser colocado em prática da forma mais efetiva possível.

Dentro dessa perspectiva, segundo Mauro Cappelletti e Bryant Garth, surge o "Movimento Universal de Acesso à Justiça". De acordo com os autores, esse movimento atua igualmente como crítica ao positivismo dogmático formalista ainda arraigado nos aparelhos judiciários, inclusive e, quem sabe, prioritariamente, no ensino jurídico, que busca identificar o

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direito e os fenômenos jurídicos somente na norma estatal, simplificando o Direito6.

Ainda sob a doutrina dos juristas Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em sua clássica obra "Acesso à Justiça"7, esse movimento universal de acesso à justiça restou caracterizado na concatenação histórica de três ondas renovatórias, as quais nada mais são do que os posicionamentos cronológicos oriundos do interesse dos países ocidentais na efetividade do processo e no restabelecimento da confiança/credibilidade da sociedade no Estado-juiz, assim descritas por aquele jurista.

Nesse contexto, a primeira onda renovatória do acesso à justiça se traduz na assistência judiciária para os pobres, tendo surgido a partir do final da primeira metade do século passado em resposta ao crescimento descontrolado das sociedades capitalistas e suas perspectivas individualistas. A preocupação externada com a referida onda renovatória foi com a criação de mecanismos para que todos os cidadãos, independentemente de suas condições econômicas ou financeiras, tivessem acesso ao "serviço judiciário" com condições concretas de requerer a proteção judicial nos casos em que ela se fizesse necessária e indispensável. É nesse contexto que surgiram as defensorias públicas, as leis de assistência judiciária gratuita e outras iniciativas similares.8Já a segunda onda renovatória, ocorrida a partir do início da década de 70 também do século passado, consistiu na tutela dos interesses meta individuais, por meio de institutos como a ação popular, a ação civil pública e a ação coletiva para a tutela dos consumidores. De fato, percebeu-se que muitos direitos e interesses não se encontravam "subjetivados" ou "individualizados" em alguém, mas, ao contrário, relacionavam-se com a fruição coletiva ou mesmo difusa das pessoas. Assim, o objeto da analisada onda renovatória de acesso à justiça foi viabilizar a representação judicial (no sentido de atuação concreta no plano do processo) de direitos e interesses que, de outra forma, estariam carentes de salvaguarda jurisdicional, como ocorreria, por exemplo, com o meio ambiente ou com a moralidade administrativa.

E, por fim, a terceira onda renovatória surgiu a partir do final da década de 70 do século passado, objetivando a efetividade do processo.

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Essa onda é a concretização da concepção cada vez mais ampla do acesso à justiça, ou seja, tenta-se, por meio de reformas, chegar à prestação jurisdicional completa de forma mais rápida ? menos burocrática; mais barata - gratuita e menos formal ? desformalizada. Desse norte, surgem os procedimentos jurisdicionais informais e os mecanismos para solução extrajudicial de conflitos.

Assim, com o despertar da terceira onda renovatória do direito processual ? fase da efetividade do processo ?, surge a necessidade de encará-lo não apenas como instrumento de realização do direito material, mas também como uma sucessão de atos procedimentais que buscam concretizar a atuação da jurisdição de modo que esta atinja seu escopo magno: a pacificação social.

É importante ressaltar, inclusive, que, somente com o advento do instrumentalismo do processo, que surgiu na Itália na década de 50 do século passado, com o marco do Projeto Florença, em que a visão teleológica impôs a substituição da técnica processual pela efetivação de sua tutela, é que o processo judicial deixou de ser analisado como um fim em si mesmo e passou a ser visto como um meio de estabelecer a ordem jurídica justa, solucionando conflitos de direito material e garantindo à sociedade a atuação imparcial e ética do Estado-juiz.

Por essa vertente, evidencia-se a moderna percepção do processo como instrumento do direito material e meio ético e político de atuação da justiça, atendendo às necessidades dos novos tempos, de modo a superar os formalismo e conceitualismo processuais, promovendo, a cada um dos jurisdicionados, agilidade, participatividade e segurança para uma ordem jurídica justa.

Entrementes, apesar de a ordem jurídica estar pautada na instrumentalidade do processo, por visar à construção de técnicas processuais efetivas, rápidas e adequadas para a realização do direito processual, minimizando, pois, a distância entre o direito material e o processo, verifica-se, no atual estágio da sociedade, que o exclusivo acesso ao aparato judicial não se mostra suficiente para a promoção do efetivo acesso à justiça.

Com efeito, simplesmente assegurar às pessoas o exercício do direito subjetivo de provocar a atuação do Poder Judiciário toda vez que se ver em face de uma violação ou ameaça de violação de direitos não significa, plenamente, que haverá a adequada resolução dos litígios postos sub...

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