Relendo Os Litigantes

AutorLeonardo Brandelli
Páginas115-121

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Ver Nota37

Os Litigantes são uma bela ilustração do direito tal como pode ser lido no espelho da literatura. Por isso, é fácil entender por que a peça aparece em lugar de destaque nos estudos dedicados às relações frutuosas que podem ser estabelecidas entre as duas disciplinas. O interesse pela descrição crítica da instituição judiciária do Antigo Regime por Racine contrasta com o desfavor de que sofre a peça junto às companhias de teatro, embora a comédia contenha muitas situações engraçadas aptas a divertir o público e a luz que lança sobre o direito não tenha envelhecido nada.

Que a comédia é obra de Racine, e não de Molière como muitas vezes se crê, é causa de espanto. Não é preciso lembrar que Racine é um dos mais célebres tragediógrafos franceses, sempre contraposto ao outro grande tragediógrafo do nosso país, Corneille. Que o autor de Andrômaca, Fedra ou Berenice tenha redigido uma comédia, aliás a única que ele escreveu, supera o entendimento. Indaga-se, aliás, quais teriam sido os motivos que levaram Racine a frequentar um gênero que não era o seu. Vários fatores são propostos pelos especialistas em literatura francesa. A experiência pessoal de Racine, em matéria judiciária, teria contado muito na escolha do tema, tratado de forma burlesca. De fato, o autor precisou mover um longo processo para conservar o priorado de Epinay, que obti-vera graças ao seu tio cônego em Uzès. Outro motivo estaria relacionado à influência que teria exercido um dos seus professores em Port-Royal. Antes de converter-se ao jansenismo e retirar-se do mundo, Antoine Lemaistre pertencera aos advogados mais célebres de sua época. Enfim, o ilustre autor teria querido provar que, a exemplo do seu rival Corneille, era capaz de brilhar tanto na tragédia quanto na comédia.

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1) Mas trata-se, no caso de Os Litigantes, de uma autêntica comédia?

Na verdade, trata-se mais de uma farsa, na tradição das farsas antigas ou da Idade Média. A farsa é uma peça de teatro curta que representa situações cômicas, peças pregadas a personagens, amiúde, tolos ou ingênuos; chacotas ou sátiras que visam as instituições ou os poderosos. Há mais de uma situação picante em Os Litigantes. Há um juiz que quer julgar noite e dia e que seu filho o tranca em casa para que ele não possa ir ao tribunal. Contudo, o magistrado pretende abrir uma audiência, mesmo que seja sob as goteiras da casa; depois ele se obstina em prosseguir através da grade do porão, onde acaba por rachar a cabeça. O lado farsesco da peça traduz-se igualmente pelo tema do processo que encerra Os Litigantes, o de um cão, Citron, que roubou um capão. Citron comparece diante do juiz e, para enternecer este último, o advogado apresenta-lhe os cãezinhos que correm o risco de tornarem-se órfãos por força da sentença, cãezinhos que não se contêm e deixam, debaixo de si, poças que o advogado aponta como lágrimas.

O ritmo endiabrado da peça é pouco propício ao aprofundamento dos personagens. Aliás, o homo juridicus não passa, afinal, de uma faceta secundária do caráter humano. Por isso, não surpreende que, diferentemente dos personagens das comédias de Molière, os de Os Litigantes não tenham entrado para o vocabulário cotidiano. Se qualificamos alguém de Harpagão, Tartufo ou Alceste, qualquer pessoa dotada de um...

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