Religi

AutorMagalh

Introdução

A realidade política do Brasil hodierno tem apresentado a ascensão de um segmento conservador na gestão do aparelho do Estado. Tal projeto, além de reacionário em face de valores democráticos, mostra-se eivado por uma ideologia de confessionalidade neopenteconstal do submundo evangélico, segmento religioso notadamente fundamentalista. Cabe ressaltar que, para Mariano (2004, p. 123-124), os protestantes neopentecostais caracterizam-se

[...] pelo anticatolicismo, por radical sectarismo e ascetismo de rejeição do mundo. No plano teológico, enfatizaram o dom de línguas (glossolalia), seguindo a ênfase doutrinária primitiva dessa religião. [...] [além de] conferirem ênfase teológica à cura divina, seguindo o bem-sucedido movimento de cura propagado nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. [Já os neopentecostais] caracterizam-se por enfatizar a guerra espiritual contra o Diabo e seus representantes na terra, por pregar a Teologia da Prosperidade, difusora da crença de que o cristão deve ser próspero, saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos, e por rejeitar usos e costumes de santidade pentecostais, tradicionais símbolos de conversão e pertencimento ao pentecostalismo. O conservadorismo de costumes une-se à agenda ultraliberal de redução do Estado na condução da economia, o que, em última instância, aprofunda uma gestão pública de mínimo para o social e máximo para o capital. Essa realidade política e social reverbera de forma substantiva no campo da saúde mental, culminando em processos de desfinanciamento e sucateamento de políticas construídas a duras penas a partir de intervenções dos movimentos sociais. Nessa direção, a reflexão sobre as instituições imagem e semelhança da ideologia do atual governo federal - comunidades terapêuticas para o tratamento de usuários de álcool e outras drogas - mostra-se relevante, sobretudo, por esta empreitada demandar cuidados diante da análise das reais necessidades dos usuários de tais serviços.

O objetivo do presente ensaio teórico é refletir sobre a relação religião-comunidades terapêuticas, propondo problematizações a partir da mediação dos conceitos de laicidade e apoio social, donde procuramos sinalizar a necessidade de defesa intransigente dos direitos humanos e do fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), expressões claras do projeto ético-político (PEP) do Serviço Social, as quais se evidenciam ameaçadas na contemporaneidade.

O presente texto é fruto da dissertação de mestrado intitulada Serviço Social, (des)patologização da vida e religiosidade em Saúde Mental, defendida em fevereiro de 2020 no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Sergipe (Pross/UFS) e aprovada com orientação à publicação. Trata-se de uma revisão de literatura que conformou reflexões conclusivas de pesquisa de abordagem qualitativa e natureza exploratória, donde se utilizou o instrumento da entrevista semiestruturada para a coleta de dados junto a profissionais do Serviço Social, os quais tiveram suas considerações analisadas pela via da análise de conteúdo por categorização temática. O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - código de financiamento 001.

Relação religião-comunidades terapêuticas: a particularidade brasileira

Não é muito difícil traçar o motivo da discórdia entre a perspectiva ídeo-teórica que baliza o PEP profissional do Serviço Social e as comunidades terapêuticas brasileiras. As comunidades terapêuticas nasceram no segundo pós-guerra na tentativa de humanizar os hospitais psiquiátricos, lócus de verdadeiros supliciamentos do corpo do louco (1) . É com Maxwell Jones na Inglaterra que esta proposta de humanização dos hospitais psiquiátricos consagra-se no termo comunidade terapêutica.

A proposta de Jones era a de humanizar o tratamento, as relações entre profissionais da saúde e os internos. Ainda que alvo de críticas substantivas de membros da antipsiquiatria e da psiquiatria democrática italiana, a exemplo de Franco Basaglia, tratou-se de uma experiência reformista que inaugurou as possibilidades de se colocar em xeque o modelo manicomial de tratamento. Apresentou uma verdadeira democratização na dimensão intra-hospitalar, a construção de uma comunidade:

[...] a idéia [sic.] de comunidade terapêutica pauta-se na tentativa de 'tratar grupos de pacientes como se fossem um único organismo psicológico'. Mais que isso, através da concepção de comunidade, procura-se desarticular a estrutura hospitalar considerada segregadora e cronificadora: o hospital deve ser constituído de pessoas, doentes e funcionários, que executem de modo igualitário as tarefas pertinentes ao funcionamento da instituição. Uma comunidade é vista como terapêutica porque é entendida como contendo princípios que levam a uma atitude comum, não se limitando somente ao poder hierárquico da instituição. (AMARANTE, 1995, p. 29). A comunidade terapêutica, todavia, ao estender-se pelo mundo, não se manteve fiel à sua natureza clássica. A este respeito, Cavalcante (2019) afirma que no mesmo período de vigência da comunidade terapêutica de Maxwell Jones, emergente de um processo de reforma psiquiátrica em curso, desenvolve-se, também, a vertente estadunidense, centrada no tratamento de usuários de drogas e num modelo de reforma moral individualista. Duas tendências em cena; de um lado uma comunidade terapêutica reformista, fomentadora de práticas democráticas e humanizadoras no contexto do hospital psiquiátrico, de outro uma comunidade terapêutica restrita a usuários de drogas, a qual reatualiza o tratamento moral individual da perspectiva manicomial.

Destaca-se a correspondência econômico-social destas duas vertentes. A experiência inglesa, onde o Estado de bem-estar social consolidouse numa perspectiva universalista, de maior inclusão e equidade no acesso às políticas sociais, traz uma tendência de tratamento do louco numa abordagem democrática, de promoção de empoderamento. Doutra sorte, na experiência estadunidense, onde o Estado de bem-estar social consolidouse num direcionamento meritocrático e focalizador, o que restringiu - e ainda restringe - o acesso às políticas sociais, a abordagem de tratamento na comunidade terapêutica foi balizada numa perspectiva moralizadora individualista, o que refletiu a natureza substantivamente meritocrática da forma de gestão econômico-social do país.

Nessas experiências, a natureza das comunidades terapêuticas foi conformada por elementos econômico-sociais e culturais. No caso do Brasil não foi diferente. Aqui não se consolidou um Estado de bem-estar social amplo ou meritocrático. Na periferia do mundo capitalista, até em seus melhores períodos econômico-sociais, desenvolveu-se um processo de significativa exclusão, realidade que é exponenciada em tempos de neoliberalismo; eis os determinantes para a emergência e o campo de atuação das comunidades religiosas (neo)pentecostais que atuam no combate às drogas.

Desse modo, as comunidades terapêuticas no Brasil foram conformadas a partir de uma aproximação com o modelo norte-americano, centrado na reforma moral individual, mas balizado por elementos culturais específicos da formação social brasileira, dos quais se destaca a religiosidade e sua característica de lidar com situações existenciais e sociais limite (VAS-CONCELOS, 2019; CAVALCANTE, 2019).

Assim surgem as comunidades terapêuticas confessionais no Brasil, mas qual a relação da confessionalidade com a perspectiva de abstinência no tratamento de pessoas com problemas devido ao uso abusivo de álcool e outras drogas, principal elemento de discórdia com a perspectiva ídeoteórica do PEP profissional, defensora da política de redução de danos (2) ? Em nossa perspectiva é o fundamentalismo religioso, o qual caracteriza muitas das igrejas pentecostais e neopentecostais que se aventuram na gestão de comunidades terapêuticas brasileiras, que explica a aderência à perspectiva de tratamento focado na abstinência. "Fundamentalistas são os defensores do que julgam ser os fundamentos da sua religião, quando sentem que estão sendo atacados" (AMALADOSS, 2002, p. 182).

Podem-se considerar fundamentalistas não apenas segmentos das religiões do livro (cristianismo, judaísmo e islamismo), mas todo o sistema de pensamento que se pretende dogmático, segregador e que negue a existência de outros grupos da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT