Reconhecimento de propriedade definitiva dos remanescentes de comunidades quilombolas: Definição de critérios legais e questões controversas na doutrina

AutorSandro Dias Silvestre
Páginas3-30

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I Introdução

O processo de redemocratização1 da década de 80, que culminou com a Constituição Federal de 1988, procurou, no afã de resgatar a democracia, prover todas as camadas da sociedade com justiça e dirimir as desigualdades sociais. Muitas são suas formas de externar esse resgate. Desde o artigo 5º, com seus 78 incisos até a interpretação literal e irrestrita da legislação infraconstitucional a luz da lei maior.

Entre os inúmeros pontos de vista está o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), onde prevê que o Estado deve regulamentar2 a concessão do título de propriedade definitivo aos remanescentes de comunidades quilombolas. É extremamente precisa a localização deste dispositivo constitucional nasPage 4 disposições transitórias, pois como preceito pragmático visa legitimar uma situação jurídica, até então, não reconhecida. O moderno conceito de justiça histórica visa atenuar os efeitos do tratamento e de outras desumanidades, que repercutem até hoje, pelas quais foram submetidos os escravos de outrora. Evidentes frutos do processo histórico. O dispositivo legal promove-os a cidadãos, titulares de direitos, no que é pertinente a espoliação do exercício ao direito de propriedade.

O legislador constituinte foi sábio em garantir as condições para que tais comunidades pudessem conservar suas tradições e proteger o patrimônio material e imaterial que constituem. Corroborando o espírito do mesmo legislador, a Constituição Federal declara em seu artigo 216 caput, “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, (...), portadores de referencia à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. E ainda o § 5º, enuncia quer “ficam tombados os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”.

Não mais ficariam em situação marginal, sujeitando-se às pressões de proprietários, ditos, legalmente constituídos, dos próprios governos locais e da especulação imobiliária. Aquela situação de posse a margem da lei, sem o reconhecimento necessário atinente à época da escravidão, não mais poderia sustentar-se haja vista o tratamento dado pela Lei Maior. Não poderia coexistir a Constituição da República de 1988 com o “escravo”. Não como o escravo do século XIX, mas, pior ainda, como o escravo implícito, tácito do século XX e XXI.

II Questão Histórica dos Quilombos no Brasil

É sabido por todos que a escravidão no Brasil maculou e macula a nossa história e repercute até os dias de hoje. Além da discriminação racial, uma das conseqüências é a necessidade do tratamento justo as comunidades remanescentes, como focos de resistência – os quilombos. Os quilombos no Brasil sempre foram tratados de forma marginal, inclusive após o dia 13 de maio de 1888. Data simbólica, quando se acreditou haver dado solução para o “problema do negro” no Brasil. Representam uma herança viva de um povo que faz parte da nossa história. Investidas militares, coexistência pacífica e comércio rudimentar foram aPage 5 evolução do tratamento dado a estes agrupamentos humanos. Abolida a escravidão, o termo “quilombo” continuou e a sociedade nunca deu o devido tratamento digno a estes brasileiros. O reconhecimento e a segurança jurídica necessária vieram 100 anos depois de abolida a escravidão com a promulgação da Constituição da República em 1988. Não mais são quilombos, mas remanescentes de quilombos – reduto de um patrimônio cultural não conhecido.

Para chegarem até os dias de hoje, estas comunidades, em regra viveram de uma economia interdependente (Restinga de Marambaia, RJ), integraram-se a sociedade local (Paiol da Telha, PR), ocuparam terras de grande relevância econômica (Sapê da Terra, ES), coexistem com grandes propriedades rurais (Mata Cavalo, MT) e contíguas a propriedades federais (Alcântara, MA). Todas ameaçadas e pressionadas por interesses de grupos econômicos e governos. Ainda que haja o tratamento legal incontroverso dado a questão, as causas que são decididas na esfera judicial contêm o mérito da validade do auto-reconhecimento e do direito de propriedade. Pois a objetividade do rito previsto em lei (Decreto-Lei nº. 4.881/2003), não comporta o viés econômico, no que diz respeito à valoração ao próprio direito de propriedade, apenas preserva patrimônio histórico, identidade cultural e étnica.

A auto-identificação, auto-reconhecimento ou auto-definição, termos que variam na doutrina, mas que se referem ao critério de que os próprios grupos humanos são os mais bem qualificados para se definirem. São excluídos os elementos biológicos, lingüísticos e raciais, e a partir de uma óptica interna os próprios indivíduos dos grupos elencam seus predicados, que os identificam. Este método inovador foi introduzido por Frederik Barth, e denomina “sinais diacríticos, isto é, diferenças que os próprios atores sociais consideram significativas e que, por sua vez, são revelados pelo próprio grupo.”3 Fica afastado o método que um observador externo faz uma analise e julga critérios que não incluem o elemento humano e por conta de vícios e “pré-conceitos”, não consegue interpretar a trajetória histórica, usos e costumes do grupo estudado. Fica reforçado o dinamismo social e econômico que demonstra a interdependência de seus participes, e não mais como se fosse um retrato estáticoPage 6 de grupo humano, encastelado em um reduto, sob ação militar do Estado, como no século XVII ao XIX.

O direito além de buscar promover a justiça, em uma nova concepção procurar fazer o mesmo quanto às injustiças históricas. Evidente que não pode fazê-lo de uma forma plena, mas volta-se para as repercussões presentes àquelas injustiças. Rothenburg, em seu parecer contra o PL 44/2007 escreve o que quer demonstrar a intenção do legislador quanto a isso: “A justiça histórica, que, longe de estar associada ao passado, é o reconhecimento de que o colonialismo continuou produzindo efeitos mesmo depois de oficialmente abolido (...). São os ‘direitos à memória’, ‘direito a verdade’, e as ‘reparações’ e as formas que estas que podem ou não ser realizadas (...).”4

III Reconhecimento Legal da Propriedade de Comunidades Quilombolas

Porém, o legislador constitucional não se atentou a maiores minúcias quanto à forma para concessão de título definitivo. É verdade que o texto do artigo 68 da ADCT é autoaplicável, ou seja, entende-se claramente a intenção do legislador. Enuncia que: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” Interpretação literal. Apenas se faz necessário o poder regulamentar do Estado com o decreto para determinar sua forma: identificação de pessoas, delimitação de áreas, órgãos competentes e procedimento5. O que se infere a concretização dos preceitos constitucionais é que se deve ponderar os incisos XXII e XXIII do artigo 5º da CF: direito à propriedade e atendimento a sua função social. De qualquer forma, esta lacuna viria a ser preenchida apenas no ano de 2001, por meio de Decreto Presidencial nº. 3.912/2001. Em um segundo momento, houve a criação de um grupo de trabalho para rever as disposições até então vigentes quanto à matéria. Trabalho que culminou com a revogação do dispositivo legal, substituindo o Decreto 4.887/2003.

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Ao analisar a letra das duas leis fica clara a mudança do trato com os procedimentos necessários para que a lei atinja seu fim, haja vista troca de governo, o que reflete a mudança de opção política. Foi dada uma nova forma de abordagem, como conseqüência de nova corrente política e toda a sua gama de valores que ocupou e ocupa o poder executivo federal.

O primeiro deles foi o Decreto 3.912 de 10 de setembro de 2001. Para concretizar o disposto constitucional, foi incumbido a Fundação Cultural Palmares, fundação de direito público que trata de assuntos ligados à comunidade negra e a direitos conexos, tratar do processo administrativo que se inicia por requerimento do interessado até o reconhecimento para concessão do justo título de domínio. Ainda concedia espaço para apreciação do relatório técnico do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), IBAMA (Instituto Brasileiro de Assistência ao Meio Ambiente), SPU (Secretaria de Patrimônio da União), FUNAI (Fundação nacional de Assistência ao Índio) e INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O relatório técnico seguirá critérios históricos, étnico-antropológicos, culturais, sócios econômicos, ambientais. Pondera apenas quanto às terras pertencentes à União. Após isso, o relatório técnico é incluído em um parecer conclusivo que publicado abre oportunidade para eventuais impugnações de terceiros e particulares. Declara como autoridade competente administrativamente o Presidente da Fundação Cultural Palmares e em segunda instância administrativa o Ministro de Estado da Cultura, respaldado pela Lei nº. 9.649/1998 (organiza a Presidência da República e os Ministérios), que lhe atribui tal competência. Aprovado o parecer conclusivo por tal autoridade será concretizado em consonância com o artigo 68 da ADCT, e, por conseguinte será concedido o título por decreto e inscrição no registro de imóveis correspondente.

O decreto apesar ser uma resposta tardia a Constituição Federal é omisso, extravasa o dispositivo transitório e, portanto não se aplica a intenção do legislador constitucional. Em seu artigo 1º, inciso I, restringe o reconhecimento do título de propriedade...

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