Remuneração e salário

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas781-861

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I Introdução

A onerosidade consiste em um dos elementos fático-jurídicos componentes da relação empregatícia. Ela se manifesta no contrato de trabalho por meio do recebimento pelo empregado de um conjunto de parcelas econômicas retributivas da prestação de serviços ou, mesmo, da simples existência da relação de emprego. Trata-se de parcelas que evidenciam que a relação jurídica de trabalho formou-se com intuito oneroso por parte do empregado, com intuito contraprestativo, com a intenção obreira de receber retribuição econômica em virtude da relação laboral estabelecida. A esse conjunto de parcelas retributivas conferem-se, regra geral, os epítetos de remuneração ou de salário.

As expressões remuneração e salário corresponderiam, assim, ao conjunto de parcelas contraprestativas recebidas pelo empregado, no contexto da relação de emprego, evidenciadoras do caráter oneroso do contrato de trabalho pactuado.

Embora esse seja, de fato, um dos sentidos que se atribuem às expressões remuneração e salário (a acepção de parcelas contraprestativas pagas ao empregado em função da prestação de serviços ou da simples existência da relação de emprego), deve-se esclarecer que há outras acepções vinculadas a essas palavras, em especial ao verbete remuneração.

II Remuneração e salário: distinções
1. Salário: definição

Salário é o conjunto de parcelas contraprestativas pagas pelo empregador ao empregado em função do contrato de trabalho.

Trata-se de um complexo de parcelas (José Martins Catharino) e não de uma única verba. Todas têm caráter contraprestativo, não necessariamente em função da precisa prestação de serviços, mas em função do contrato (nos períodos de interrupção, o salário continua devido e pago); todas são também devidas e pagas diretamente pelo empregador, segundo o modelo referido pela CLT (art. 457, caput) e pelo conceito legal de salário mínimo (art. 76 da CLT e leis do salário mínimo após 1988).

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2. Remuneração: definição e distinções

A cultura justrabalhista pátria tem conferido pelo menos três sentidos diferenciados à palavra remuneração. Trata-se de acepções obviamente próximas, embora guardando certa especificidade entre si.

A primeira dessas acepções praticamente identifica, como visto, o conceito de remuneração ao de salário, como se fossem expressões equivalentes, sinônimas. A lei, a jurisprudência e a doutrina referem-se, comumente, ao caráter remuneratório de certas verbas, classificam parcelas como remuneratórias, sempre objetivando enfatizar a natureza salarial de determinadas figuras trabalhistas. Em harmonia a essa primeira acepção, utiliza-se no cotidiano trabalhista, reiteradamente, a expressão remuneração como se possuísse o mesmo conteúdo de salário.

A segunda dessas acepções tende a estabelecer certa diferenciação entre as expressões: remuneração seria o gênero de parcelas contraprestativas devidas e pagas ao empregado em função da prestação de serviços ou da simples existência da relação de emprego, ao passo que salário seria a parcela contraprestativa principal paga a esse empregado no contexto do contrato. Remuneração seria o gênero; salário, a espécie mais importante das parcelas contraprestativas empregatícias.

Finalmente, há uma terceira acepção, que alarga um pouco mais a diferenciação entre as figuras. Essa terceira acepção está fundada no modelo sugerido pelo texto dos arts. 76 e 457, caput, da CLT.

De fato, a Consolidação teria construído para a palavra salário tipo legal específico. Ele seria o conjunto de parcelas contraprestativas devidas e pagas diretamente pelo empregador ao empregado, em virtude da relação de emprego (arts. 457, caput, e 76, CLT). Ou seja, para esta noção celetista de salário será essencial a origem da parcela retributiva: somente terá caráter de salário parcela contraprestativa devida e paga diretamente pelo empregador a seu empregado.

Em face desse modelo legal de salário (que está presente, como se viu, também no conceito legal de salário mínimo), valeu-se a CLT da expressão remuneração para incluir, no conjunto do salário contratual, as gorjetas recebidas pelo obreiro (que são pagas, como se sabe, por terceiros). Diz o art. 457, CLT: “compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber” (grifos acrescidos).

Remuneração e Gorjetas — A respeito dessa terceira acepção, há duas variantes interpretativas no Direito brasileiro.

A primeira, que já foi muito importante na prática jurídica (antes do advento da Súmula 354 do TST), buscando reduzir o efeito desse aparente contraponto celetista entre remuneração e salário. Nesta linha, considerava-

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-se que a CLT pretendeu utilizar-se da palavra remuneração apenas como fórmula para incluir no salário contratual obreiro as gorjetas habitualmente recebidas pelo empregado (gorjetas que são pagas, repita-se, por terceiros, e não pelo empregador mesmo).

Em síntese, tratou-se de mero artifício legal seguido pelo caput do art. 457 da CLT, para permitir, sem perda da consistência da definição de salário feita pela lei, que as gorjetas incorporassem a base de cálculo salarial mensal do trabalhador. Assim também sustentava o jurista Amauri Mascaro Nascimento: o “legislador quis que as gorjetas compusessem o âmbito salarial. Como as gorjetas não são pagamento direto efetuado pelo empregador ao empregado, a solução encontrada foi introduzir na lei a palavra remuneração”1. Nesta linha, a ordem justrabalhista brasileira teria se valido da expressão remuneração (art. 457, caput, CLT) apenas para determinar que as gorjetas, embora não sendo pagas diretamente pelo empregador, integrassem o salário contratual, para diversos fins legais.

Observe-se que caso seja acolhida a presente linha interpretativa, a média de gorjetas habituais recebidas pelo obreiro no contexto da relação empregatícia passaria a compor seu salário contratual (art. 29, § 1º, CLT). Em decorrência, essa média repercutiria nas demais parcelas contratuais cabíveis (13º salário, férias com 1/3, adicionais calculados sobre o salário contratual, horas extras, repouso semanal remunerado, aviso-prévio, FGTS com 40%, por exemplo).

Não obstante esta interpretação reduza, significativamente, a diferenciação entre remuneração e salário, ainda assim a ordem jurídica preservaria tal diferenciação, pelo menos no tocante ao salário mínimo legal. É que o salário mínimo é definido, explicitamente, como “a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador” (art. 76, CLT, com grifos acrescidos; na mesma linha, as diversas leis regulatórias do salário mínimo, depois da Constituição de 1988: por exemplo, o art. 6º da Lei n. 8.419/92). Desse modo, pelo menos com respeito à composição do salário mínimo legal, não poderá o empregador tomar em conta os valores médios recebidos pelo obreiro a título de gorjetas; neste quadro, o montante do salário mínimo legal sempre deverá ser diretamente pago pelo próprio empregador.

Há uma segunda vertente interpretativa, que busca alargar a diferenciação insculpida nos arts. 76 e 457, caput, da CLT. Para tal vertente, a Consolidação, nestes citados preceitos, teria criado dois tipos-legais distintos e inconfundíveis: o salário, parcela contraprestativa paga diretamente pelo empregador, e a remuneração, parcela contraprestativa paga diretamente por terceiros.

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À luz de tal vertente hermenêutica, as parcelas estritamente remuneratórias (como as gorjetas) não produziriam diversos efeitos próprios às parcelas estritamente salariais. Assim, elas não comporiam o salário mínimo legal (o que é, de fato, inevitável, em vista do disposto no art. 76, da CLT, e nas Leis do Salário Mínimo, após 1988). Porém, também não iriam integrar o próprio salário contratual obreiro, deixando de produzir alguns de seus clássicos reflexos. Nesta direção há, inclusive, a Súmula 354 do TST, aprovada em maio de 1997: “As gorjetas, cobradas pelo empregador na nota de serviço ou oferecidas espontaneamente pelos clientes, integram a remuneração do empregado, não servindo de base de cálculo para as parcelas de aviso-prévio, adicional noturno, horas extras e repouso semanal remunerado”2.

Ressalte-se, entretanto, que, mesmo seguindo-se esta visão defensora da incomunicabilidade entre remuneração e salário, há alguns reflexos contratuais que ainda restam inevitáveis no tocante à média da parcela remuneratória de gorjetas habitualmente recebidas. É que as gorjetas compõem, sim, o salário de contribuição do empregado para fins de repercussões previdenciárias: neste quadro...

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