Reorientacoes eticas da politica social: do primado do ethos solidario ao imperio da moral individualista possessiva/Ethical reorientations of social policy: from the primacy of the solidarity ethos to the empire of possessive individualistic morals.

AutorPereira, Potyara Amazoneida P.

Introducao

Nao e de hoje que a literatura especializada da politica social veicula--explicita e implicitamente--moralidades (1) condenatorias dos direitos a protecao social, garantidos pelo Estado, como conquista democratica e assunto de justica (estatutaria e social). Essa condenacao ganhou corpo com a chamada "crise" dos Estados de Bem-Estar, ou Estados Sociais, desde fins dos anos 1970, visto que, para os seus propagadores, tal crise decorria de dificuldades economicas e fiscais produzidas por abusivos gastos sociais dos governos. Contudo, grande parte dessas dificuldades foi fabricada para justificar austeros cortes nos orcamentos sociais e negligencias publicas protetivas (JONHSON, 1990).

Disso se depreende que as forcas motrizes dessas moralidades nao residiam na superestrutura do sistema do capital em seu estagio mais avancado de difusao midiatica, mas na estrutura economica desse sistema que, para se reproduzir, necessita de colaboracoes extraeconomicas e superestruturais--dentre as quais, ortodoxias morais e politicas. E como diz Jessop (2008): nao existe economia fora de um complexo diversificado de relacoes sociais. O economico nao se rege por uma logica que se autocorrige e se autoexpande, mas depende de forcas extraeconomicas. Por isso, o capitalismo nao e um simples "sistema economico" e nem o capital um mero "fator de producao".

De fato, com base em autores como Meszaros (2009) e Mandel (1975), admitem-se diferencas entre capital e capitalismo. O capital, como relacao social, tem mais de tres mil anos, enquanto o capitalismo tem em torno de quinhentos. Nas sociedades pre-capitalistas o capital ja existia sob a forma elementar de dinheiro proveniente da renda fundiaria, cujo uso nas operacoes de troca gerava um suplemento de valor circunscrito a esfera da circulacao. Ja no capitalismo o capital atua nao so na circulacao, mas na base produtiva, dominando totalmente esse modo de producao (PEREIRA-PEREIRA, 2019).

Assim, o capital, que permeia por inteiro o capitalismo, e uma relacao que nao dispensa a colaboracao de mecanismos nao mercantis para suprir limitacoes do mercado e oferecer condicoes para a producao e a reproducao do capital e da forca de trabalho como mercadoria ficticia, isto e: que pode ser comprada e vendida

sem que se coverta, na realidade, em mercadoria [...] criada em processo de trabalho e sujeita as pressoes competitivas do mercado para racionalizar a sua producao e reduzir o prazo de rotacao do capital nela investido. (JESSOP, 2008, p. 16). Nao a toa, a sociabilidade capitalista sempre foi mediada por uma etica segundo a qual o trabalho como meio de enriquecimento pessoal--proibido na Idade Media--deixou de ser pecado para tornar-se virtude. Virtude divina, porque a moral burguesa que triunfou sobre a moral da era feudal fez coincidir, na era moderna, a "vontade" de Deus com os interesses capitalistas fundados no trabalho assalariado, produtor de mais-valia e, portanto, de lucros privados por meio do nao pagamento de parte do trabalho alheio. E assim o fez, conforme Weber (1967, p. 32), respaldada em crencas religiosas, como a calvinista, que converteram em pecado a ociosidade por afrontar a honra de Deus da qual emana, segundo Calvino, o valor do trabalho. Ademais, tornou-se virtude secular porque, nos circulos laicos e profanos, a ociosidade integrou o rol dos comportamentos amorais, por ferir a moral burguesa dominante, para quem o trabalho produtivo, remunerado, realizado sob o signo da maxima utilizacao do tempo, constituia a essencia da dignidade humana.

Foi em consonancia com essa perspectiva que o impulso capitalista irrefreavel por acumulo de riqueza se tornou um ethos, isto e, um "principio orientador da vida" com "finalidade em si", ou um "espirito" que transcende imperativos de satisfacao de necessidades materiais. Contudo, foi tambem "o summum bonum desta 'etica', a obtencao de mais e mais dinheiro" (WEBER, 1967, p. 33) que--cabe acrescentar--ajudou a degradar o trabalho humano ontologicamente definido como "a primeira [e eterna] necessidade vital" (MARX, 1975a, p. 16) e "condicao fundamental para a transformacao do ser humano" (ENGELS, 1979, p. 215).

Desse modo, a etica capitalista acabou enfraquecendo: a moral da classe trabalhadora construida a partir da consciencia de sua situacao de opressao e de sua vocacao transformadora; o ethos solidario e coletivista da politica social e dos direitos sociais a ela associados; e "as vantagens fisicas, morais e intelectuais" garantidas por leis trabalhistas que, nas palavras de Marx (1975b, p. 368)--referindo-se a luta de trinta anos travada, no seculo XIX, pela conquista da jornada de trabalho de dez horas--, representaram "nao so um triunfo pratico, mas tambem de um principio": o da possibilidade de derrota da "economia politica da burguesia pela economia politica dos trabalhadores".

O presente texto tem, como pano de fundo, este conjunto de relacoes morais, determinado por exigencias socioeconomicas e politicas de carater classista. Privilegia reorientacoes dos fundamentos eticos da politica social do segundo pos-guerra, verificadas desde a transicao do regime de acumulacao keynesiano-fordista (favoravel a um ethos solidario) para o regime de acumulacao neoliberal (2) (avesso a esse ethos), a partir do final dos anos 1970. Res-gata, alem disso, conteudos que intermediam a explicacao dessas reorientacoes e lhes servem de divisas analiticas antagonicas, como direita vs esquerda, com suas indoles individualista/contratualista vscoletivista/solidaria.

A percepcao aqui adotada de que a etica tem raizes na moral como comportamento humano concreto, longevo e universal, alem de historico e cultural, exige que se faca, nesta introducao, breve distincao entre ambas as denominacoes e se desmistifique o seu carater exclusivamente virtuoso e absoluto. Cabe, portanto, pontuar que ser etico nem sempre e ser correto do ponto de vista moral e nem que este ponto de vista seja invariavelmente defensavel. Da mesma forma, nao se acredita na existencia de neutralidade capaz de converter a etica em um codigo de normas, ou catalogo de valores incontestaveis, ate porque a etica e a teoria critica da moral concreta; uma teoria construida por meio de investigacao de fenomenos morais e de normas morais de condutas efetivamente praticadas por individuos em sociedades determinadas no cumprimento de uma funcao social (WIEDMANN; GEORGE, 1975). E o que, por certo, Aristoteles (1979) considerava uma filosofia pratica, por oposicao a filosofia teoretica que trata, primeiramente, do saber em vez da conduta.

A tradicao de pensamento dialetico materialista historico, tributaria de Marx e Engels (3), que serve de norte a esta discussao, tambem concebe a etica como uma disciplina filosofica que se ocupa da teoria do comportamento moral. Para esta tradicao, a etica tem como tarefa a elaboracao e o exame dos sistemas morais, a explicacao da origem e evolucao do comportamento moral, a investigacao da essencia dos ideais e juizos morais e a formulacao dos criterios da moral, assumindo a qualidade de ciencia.

Eis porque o mundo moral, assim como as moralidades dele derivadas, constitui objeto de conhecimento da etica, que, por meio dessa funcao, acaba adquirindo perfil de moral reflexiva, teorica ou ate doutrinaria. Todavia, a moral, apesar de codificar comportamentos individuais, nao deixa de ser social porque afeta outros individuos e a comunidade e estipula regras que respondem a necessidades e exigencias sociais. Isso explica o fato de o comportamento moral se fazer "presente na vida publica, que e o campo proprio da politica" (VASQUEZ, 2001, p. 186); e porque a politica, incluindo a politica social, sempre esteve eivada de moralidades.

Moralidades na politica social contemporanea e seu trato analitico

O cerne deste texto inscreve-se no debate sobre a pertinencia do aforismo privilegiado pelo discurso neoliberal de que "o trabalho e a melhor forma de protecao social" (HIGGINS, 1981). Alem disso, suscita a analise critica do atual predominio das politicas de ativacao dos pobres para o mercado de trabalho, ou do "welfare-to-workfare" (DEAN, 2006, 2010; THEODORE; PECK, 2000), que se apoia na seguinte crenca: de que a politica de bem-estar publica, concretizadora de direitos sociais, alem de passiva e assistencialista, e um meio...

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