A reparação por danos morais à pessoa jurídica como forma de tutela aos direitos de sua personalidade

AutorProfª. Dra. Yvete Flávio da Costa; Alexandre Araújo da Silva
CargoMestre e doutora em direito processual civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP);Bacharel em direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp)
Páginas2-62

Mestre e doutora em direito processual civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); professora assistente-doutora, por concurso público, da graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Franca, onde ministra os cursos de processo cautelar e tutelas urgentes.

Bacharel em direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Franca; pesquisador-bolsista, durante a graduação, em nível de iniciação científica, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp); advogado militante.

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Introdução

O instituto da responsabilidade civil é, sem qualquer exagero, um dos temas mais fascinantes das ciências jurídicas.1E estas palavras ganham maior significado em nosso tempo, no qual as relações pessoais e sociais, os sistemas de valores, os paradigmas, enfim, a forma como o mundo é construído e reconstruído, transformam-se em uma velocidade vertiginosa.

É neste contexto extremamente dinâmico, tendo que ser adaptada constantemente, revista incessantemente, sob pena de se tornar arcaica e ineficaz, que se insere a responsabilidade civil. É esta o instrumento por excelência de que se utiliza a justiça instituída para o restabelecimento do equilíbrio, quando este é perdido, de um dos conjuntos de valores aos quais os homens são mais sensíveis: o patrimônio.

Todos nós temos uma intuição inerente da medida do justo e do injusto. Não é necessária, a quem quer que seja, a iniciação no sistema das leis para que consiga identificar, num rápido resvalo do olhar, a ocorrência de um ato danoso. E é nesses momentos que se torna necessária a presença da Page 3 responsabilidade civil, a atender o clamor da justa reparação, com o fito de evitar a vingança beligerante entre os homens e a conseqüente dissolução da vida em sociedade.

No curso desta evolução, o próprio conceito de patrimônio teve de ser modificado. Definidos seus contornos há milênios, como um conjunto de bens dotados de valor econômico vinculados a uma pessoa, passou, em épocas mais recentes, a açambarcar outros bens jurídicos, estes incorpóreos, intangíveis, não pecuniários, mas não menos importantes: os direitos da personalidade.

Dessa maneira, paralela à noção de patrimônio stricto sensu tradicional, ligada aos bens do comércio humano, surge uma outra, reunindo os bens ideais que formam o conteúdo da própria essência da pessoa, denominada, analogicamente, de patrimônio ideal.

Tal fenômeno, insuflado pela corrente valorizadora dos direitos da pessoa humana surgida nos vapores do Iluminismo, requereu a gênese de um novo instrumento de reparação, calcado em outros princípios que não os do ressarcimento matemático dos danos pecuniários. E deste modo ganhou força o já outrora existente, mas então ainda cambante, instituto da reparação por danos morais.

Objeções várias foram bradadas desde então. Como aquilatar o preço da dor humana? Como determinar a existência de mencionado dano, bem como sua extensão? Como não favorecer o surgimento de um verdadeiro comércio dos sentimentos? Não foram poucos os que, utilizando-se dos mais refinados argumentos - é necessário reconhecer - tentaram negar a possibilidade de tal reparação. Alguns até concordaram com a existência desse tipo de dano, mas o consideraram irressarcível.

Esqueceram-se de que em um Estado de Direito não pode haver ilícito ou injusto inalcançável aos instrumentos colocados à disposição da justiça. Onde o direito não estivesse grassaria a força e o arbítrio, sendo imagináveis as conseqüências. Não por outra justificativa foi inserido o célebre inciso XXXV no artigo 5º de nossa Carta Política. Page 4

Por bem, tal instituto angariou adeptos ferrenhos e contumazes, e o que um dia fora classificado como uma "extravagância do espírito humano" 2obteve a consagração ao ser preceituado nos incisos V e X do artigo 5º da Constituição Brasileira.

Em necessária coerência com esta nova normatização, mais recentemente o instituto da reparação civil por danos morais foi incluído expressamente na legislação infraconstitucional, com a entrada em vigor da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, pela qual foi instituído o Código Civil que substituiu o até então vigente. Com efeito, assim determina o seu art. 186: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". [Grifo nosso]

Esta norma expressa, juntamente com outras que servem de auxílio na determinação de seu conteúdo3, pôs fim de uma vez por todas à polêmica sobre a possibilidade de reparação dos danos morais, dissolvendo o resto das resistências inacreditavelmente ainda existentes, provenientes de uns poucos (felizmente) que questionam a eficácia e imperatividade das normas constitucionais no mundo concreto das relações civis.

Mas as demandas humanas não encontram limites. Mal sai uma polêmica, e já outra está a empurrar a porta para tomar o seu assento: seriam as pessoas jurídicas, entes aos quais o direito empresta personalidade análoga à das pessoas humanas, beneficiárias desse instrumento? Esta pergunta já há muito havia sido feita, mas parece não ter sido encarada seriamente, defendida a idéia precariamente, e ao que parece, com rubores, até por quem cogitava tal possibilidade.4 Page 5

Porém, com a permissividade genérica das normas constitucionais, os tribunais passaram, principalmente a partir de 1988, a ser constantemente consultados a respeito da questão. Já são maioria hoje os julgados reconhecendo a legitimidade ativa das pessoas jurídicas para demandar a devida reparação por danos morais causados a si.

Agora, com a referida entrada em vigor do Código Civil de 2002, este tema adquire enorme relevância, tendo em vista a inovadora previsão feita pelo legislador da proteção aos direitos da personalidade da pessoa jurídica. Deveras, preceitua o art. 52 do Código: "Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade".

Tal norma traz implícitas profundas implicações, possibilitando, doravante, a abertura de um amplo e profícuo campo de estudos a respeito do assunto. Em primeiro lugar, fica patente o reconhecimento de que também as pessoas jurídicas são titulares de direitos inerentes à personalidade. Se esta proposição, como mencionado, já vinha sendo louvavelmente defendida em diversos julgados de vanguarda, baseados sobretudo nas citadas disposições constitucionais, a verdade é que, até então, intensos debates vinham sendo travados em torno da própria titularidade de direitos da personalidade por pessoa jurídica.

Dessa forma, pelo menos em relação a esta questão, espera-se uma necessária pacificação proveniente da imperatividade do texto legal. Porém, isto está longe de significar a exaustão das controvérsias: doutrinadores e aplicadores do direito terão pela frente, a partir de agora, o árduo trabalho de delineamento e sistematização dos vários institutos correlacionados ao tema. Se a história tem mostrado que esta tarefa já não tem sido fácil em relação ao estudo dos direitos da personalidade genericamente considerados - não se tendo chegado até o momento a uma precisão inequívoca de seus contornos, dadas as dificuldades inerentes à sua plena caracterização, não obstante os inúmeros trabalhos já realizados - , o que se dirá de sua nova aplicação aos entes coletivos. Apenas como exemplo, citem-se as dificuldades para a Page 6 determinação de quais direitos da personalidade poderão ser titularizados pela pessoa jurídica, e em quais condições, visto que o legislador fez a opção por deixar isto em aberto ao introduzir a expressão "no que couber". Naturalmente, como já referido, aspectos como estes demandarão um paulatino desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial.

Neste sentido, o presente trabalho deve ser encarado como uma modesta contribuição dos autores para este desenvolvimento. No decorrer de sua exposição, serão abordadas importantes questões sobre a natureza dos direitos da personalidade e da pessoa jurídica, bem como sobre a viabilidade de compatibilização conceitual desses dois universos por meio da caracterização de bem jurídico como um "valor socialmente relevante tutelado pelo direito". Do mesmo modo, será sugerida e defendida a idéia de ser o instituto da responsabilidade civil por danos morais um dos meios mais idôneos para a tutela dos direitos da personalidade, inclusive dos titularizados pelos entes coletivos. Por fim, serão desenvolvidas algumas considerações sobre dois dos principais direitos da personalidade da pessoa jurídica: seu direito à honra e seu direito à imagem.

Longe de qualquer pretensão de esgotamento dos temas suscitados, espera-se que tais considerações possam de alguma forma ser úteis à compreensão da necessidade e importância de um profundo estudo sobre esta relativamente nova questão jurídica.

1 A pessoa jurídica como titular de direitos da personalidade

Qualquer indagação a respeito da legitimidade da pessoa jurídica para demandar reparações de cunho moral, ou extrapatrimonial, deve partir da determinação da capacidade...

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