Reparação dos danos e indenização punitiva

AutorRafael Marinangelo
Páginas55-138
CAPÍTULO III
REPARAÇÃO DOS DANOS
E INDENIZAÇÃO PUNITIVA
A noção de responsabilidade civil é tão elementar e necessária que, antes mesmo
de existir como raciocínio lógico e estruturado, já se fazia sentir no campo da psique
como a necessidade de retribuir o mal com o mal, a dor com a dor e o dano com o
castigo, independentemente de sua causa.1
Originalmente, pois, a responsabilidade era objetiva, visto que a intenção do
agente, ou mesmo a ausência dela, pouco importava à aplicação da vingança ao mal
af‌ligido. A simples constatação do dano era suf‌iciente para a resposta punitiva, a qual,
no mais das vezes, não guardava, com aquele, qualquer relação de proporcionalidade.
Aos poucos, a responsabilidade civil passou a admitir a composição pecuniária
do litígio em substituição à agressão retributiva. A iniciativa espontânea acabou
sendo institucionalizada, como ocorreu na lei sálica – importante lei bárbara em
vigor na época dos povos francos – com a instituição de taxas ou tarifas a serem
aplicadas consoante a natureza do dano e a condição da vítima.2 Percebe-se, a partir
de então, ser preferível a reparação a causar novo dano ao ofensor, cujo efeito era o
de duplicar o número de ofendidos.3
Foi, porém, a Lei das XII Tábuas, do Direito Romano, o marco da transição
entre a composição voluntária e a obrigatória ao impor, à vítima, em certos casos,
a renúncia à vingança privada e a aceitação da composição pecuniária, cuja função
era de, ao mesmo tempo, punir o ofensor e reparar ou compensar o dano.4
A autoridade passou, assim, a exercer a justiça distributiva em substituição
à justiça punitiva, pois compreendeu que as lesões praticadas contra o particular
também perturbavam a ordem pública que tentava manter, o que ocasionou o sur-
gimento das noções de delitos públicos e privados.5
1. SANTOS JÚNIOR, E. Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito. Coimbra: Almedina,
2003, p. 179. Coleção Teses.
2. SANTOS JÚNIOR, op. cit. p. 181.
3. AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. 10. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1995, v. 1,
p. 17.
4. Conforme lição de José Carlos Moreira Alves (Direito Romano, 6. ed. rev. e acrescentada. Rio de Janeiro:
Forense, 1987, v. I, p. 28): “A Lei das XII Tábuas resultou da luta entre a plebe e o patriciado. Um dos
objetivos dos plebeus era o de acabar com a incerteza do direito por meio da elaboração de um código, o
que viria refrear o arbítrio dos magistrados patrícios contra a plebe.”
5. AGUIAR DIAS, José de, op. cit. p. 18.
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INDENIZAÇÃO PUNITIVA E O DANO EXTRAPATRIMONIAL NA DISCIPLINA DOS CONTRATOS • RAFAEL MARINANGELO
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Com o advento da tipif‌icação dos delitos (Lei Aquilia), no período bizantino,
as noções de caráter geral da responsabilidade civil, até então inexistentes, começa-
ram a despontar. Os delitos eram classif‌icados em quatro categorias: furtum6 (assim
considerada a subtração intencional de uma coisa, de seu uso ou de sua posse com
o f‌ito de obter vantagem econômica), rapina (subtração violenta de coisa), iniuria
(ato praticado sem direito, no qual os jurisconsultos introduziram considerações
de índole subjetiva, evoluindo para a noção de culpa) e o damnum iniuria datum
(que previa algumas situações de deterioração ou destruição de coisa animada ou
inanimada, da qual se f‌irmou a primeira noção de dano).7-8
De acordo com os ensinamentos de Moreira Alves9, para a conf‌iguração do
damnum iniuria datum, na Lei Aquilia, era preciso estarem presentes e conjugados
três requisitos: a) a iniuria; b) a culpa, e c) o damnum. A iniuria refere-se ao dano
decorrente de ato contrário ao direito, ou seja, de ato que não estivesse amparado
pelo exercício legítimo de direito, por legítima defesa ou estado de necessidade. A
culpa conf‌igurava-se pelo ato comissivo praticado com dolo ou culpa em sentido
estrito. O damnum correspondia à lesão ocasionada à coisa por força da ação do agente.
As obrigações decorrentes do damnum iniuria datum – revela-nos o autor citado
– encontravam abrigo na actio legis Aquiliae, de caráter penal, cuja titularidade era
exclusiva do proprietário lesado pelo dano. Se o ofensor confessasse o dano, estaria
obrigado ao pagamento do prejuízo, abrangendo os lucros cessantes e os danos
emergentes. Se o ofensor o negasse, a condenação seria em dobro, como consequ-
ência do caráter punitivo da reparação.
6. Segundo MOREIRA ALVES, o elemento material do furto (furtum), a contrectatio rei, abrange não apenas “o
que modernamente se entende como furto (subtração, para si ou para outrem, de coisa alheia móvel), mas
outras f‌iguras delituosas modernas, como a apropriação indébita e certas formas de estelionato (assim, por
exemplo, cometia furtum, em Roma, o depositário ou comodatário que vendesse a coisa alheia recebida em
depósito ou em comodato – atualmente, esse delito não seria de furto, mas de apropriação indébita); por
outro lado, como se verif‌ica da parte f‌inal da def‌inição (uel ipsius rei uel utiam usus eius possessionisues) – a
qual a maioria dos autores julga interpolada –, o furtum podia ter por objeto:
1 – a coisa (ipsius rei), que seria sempre móvel (os imóveis não eram objeto de furtum, embora, como nos
informa GAIO, alguns jurisconsultos romanos antigos tivessem pretendido que eles pudessem sê-lo);
2 – o uso da coisa (usus eius); assim cometia furto o depositário que, sem consentimento do dono da coisa
entregue em depósito, se utilizava dela;
3 – a posse da coisa (possessionisue): espécie curiosa de furtum, pois quem podia cometê-la era apenas o
próprio dono da coisa, quando, por exemplo, tendo-a dado em penhor, a subtraísse do credor pignoratício
(que sobre ela tinha posse), antes do pagamento da dívida” (MOREIRA ALVES, José Carlos; Direito Romano.
6. ed. rev. e acrescentada. Rio de Janeiro: Forense, 1987, v. II, p. 271).
7. Sobre o assunto consultar também Paolo Gallo (Pene Private e Responsabilità Civile; Milano: Giuffrè Editore,
1996, p. 40). Sobre as premissas históricas romanas consultar, ainda: VENTURINI, Carlo. (Premessa
Romanistica. In: BUSNELLI, Francesco D. e SCALFI, Gianguido. (a cura di). Le Pene Private. Milano:
Giuffrè, 1985, p. 13-24.
8. Neste sentido conf‌ira-se: CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 3. ed.,
rev. e aum. São Paulo: Saraiva, 1957, v. I, p. 365-368.
9. MOREIRA ALVES, José Carlos; Direito romano, op. cit., p. 280.
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CAPítulO III • REPARAÇÃO DOS DANOS E INDENIZAÇÃO PuNItIVA
A despeito da evolução e da importância do Direito Romano para o desenvol-
vimento da noção de responsabilidade civil, os romanos não chegaram a estruturar
um princípio geral de responsabilidade civil, até porque nunca se libertaram da
ideia de composição do dano como alternativa à vingança, que ainda perdurou por
muitos séculos.10
Somente nos séculos XII e XIII, com a redescoberta do legado jurídico romano,
o Direito da responsabilidade iniciou o desenvolvimento indispensável à sua conf‌i-
guração tal qual o conhecemos nos dias atuais e, embora a Lei Aquilia continuasse
a ser ponto de referência no campo da responsabilidade civil delitual, seu uso já não
coincidia com o originário do século III a.C. Tal processo evolutivo iniciou-se em
Bolonha, no século XII, com o af‌lorar da escola de juristas dedicada à “reconstrução
analítica da obra de Justiniano e à exegese dos textos assim recuperados”, conver-
tendo o direito – que até então era matéria esparsa entre as disciplinas do trívio11 – a
categoria de ciência autônoma.12
A distinção entre ilícito doloso e ilícito culposo sedimentou-se apenas no sé-
culo XIII, com os Glosadores. O dolo, assimilado à ideia de delito, ocasionava uma
pena ao infrator, enquanto a culpa, ligada à concepção de quase delito, ensejava a
reparação do dano.
Outras tantas modif‌icações ocorreram na aplicação da Lex Aquilia, com reper-
cussão no direito atual. Ocorre, porém, que no século XVII, a evolução e as novas
demandas sociais exigiram vigoroso enquadramento dos delitos civis, cujas bases
foram lançadas pelos jusnaturalistas holandeses, germânico e franceses.
Enquanto Hugo Grócio enunciou o princípio natural da responsabilidade
civil por delito, segundo o qual o causador do dano é obrigado a repará-lo, Samuel
Pufendorf acrescenta um fundamento moral inerente ao convívio em sociedade: o
dever de abster-se de fazer mal a outrem e, em o fazendo, reparar o dano.
A partir da moral Cristã, Jean Domat elaborou o fundamento da reparação
do dano na noção de faute, assim considerada não apenas como um pecado, mas
também a imprudência, a ligeireza e a ignorância.13 Logo, todo dano advindo da
faute, ainda quando não haja a intenção de prejudicar, gera o dever de indenizar. E
tal faute pode ter diversas origens, como crimes e delitos (faute délictuelle), faltas
contratuais (faute contractuelle) e outros casos não subsumíveis a nenhuma das
10. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 9. ed., rev. e atual. de acordo com a Constituição
de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 1.: “Não chegou o Direito romano a construir uma teoria da
responsabilidade civil, como, aliás, nunca se deteve na elaboração teórica de nenhum instituto.”
11. O trívio era um de dois grupos nos quais a escola medieval era dividida. No trívio ensinava-se gramática,
retórica e dialética; no quadrívio ensinava-se aritmética, geometria, música e astronomia. O direito estava
inserido no trívio, até a reconstrução dos textos de justinianeu.
12. LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos. Trad. Marcela Varejão. Revisão da tradução de Silvana
Cobucci Leite. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 52.
13. SANTOS JÚNIOR, op. cit. p. 189.
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