Repensando o princípio do duplo grau de jurisdição no processo civil

AutorLucas Andrade Pereira de Oliveira
CargoMestrando em direito público pela UFBa. Pós -graduando em processo pelo CCJB - Centro de Cultura Jurídica da Bahia. Advogado
Páginas420-452

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1. Introdução

Sob o novo paradigma pós-positivista, os processualistas da contemporaneidade têm buscado revisitar os conceitos básicos do direito processual, superar dogmas 1 por algum tempo cristalizado e questionar as reais funções de cada instituto processual, fazendo uma releitura com supedâneo na Constituição Federal, nos seus princípios 2 e nos direitos humanos 3, observando, ainda, os postulados da hermenêutica da nova retórica 4, da novíssima retórica 5, da tópica 6, problematizando e encontrando uma solução justa para cada caso 7. Page 421

O processo civil passa por mudanças, gradativas e profundas, notadamente porque se trata de mudanças de postulados e fundamentos, por isso, uma nova leitura do processo, influenciando decisivamente o princípio do duplo grau de jurisdição.

O dogma do princípio do duplo grau de jurisdição deve ser revisto, principalmente tendo-se em conta suas razões históricas, políticas, ideológicas e econômicas. Assim, percebem-se as verdadeiras razões de um duplo grau de jurisdição, ou mesmo, de um sistema com inúmeros recursos, como é o caso do brasileiro.

Outrossim, não se pode negar que um dos desafios dos processualistas na contemporaneidade é superar a demora e a morosidade nos processos, o que, por muitas vezes, resulta em decisões injustas e ineficazes. Também, por isso, o estudo e a mitigação do princípio do duplo grau de jurisdição tornam-se por demais atuais.

1.1. Dos valores aplicados ao duplo grau de jurisdição (Segurança versus Justiça)

No Estado democrático de direito em um regime constitucionalista existe um valor- fim, a saber: a justiça. Assim, tendo como valor-fim a justiça, todo o ordenamento jurídico passará por uma releitura. Em sede, do positivismo legalista, no qual o valor maior era a legalidade que significava a segurança jurídica, o que, em tese, correspondia à justiça da decisão, pode-se concluir como uma justiça formal da decisão.

Para Hans Kelsen , por exemplo "a "justiça" significa legalidade:

É "justo" que uma regra geral seja aplicada em todos os casos em que, de acordo com o seu conteúdo esta regra deva ser aplicada. É "injusto" que ela seja aplicada em um caso, mas não em outro caso similar. E isso parece "injusto" sem levar em conta o valor da regra geral em si, sendo a aplicação desta o ponto em questão aqui. A justiça, no sentido de legalidade, é uma qualidade que se relaciona não com o conteúdo de uma ordem jurídica, mas com a sua aplicação. Nesse sentido, a justiça é compatível e necessária a qualquer ordem jurídica positiva, seja ela capitalista, comunista, democrática ou autocrática. Page 422 "Justiça" significa a manutenção de uma ordem positiva através da sua aplicação escrupulosa. Trata-se de justiça "sob o Direito 8.

Neste ideal normativista, a justiça trata-se de mera aplicação correta da norma, e a utilização do valor justiça para desqualificar a aplicação de uma norma é considerada inferência política e não jurídica. Alf Ross, diz que a ideia de justiça se resolve na exigência de que uma decisão seja o resultado de uma aplicação de uma regra geral. Assim, para ele:

A justiça é a aplicação correta de uma norma, como coisa oposta à arbitrariedade. A justiça, portanto, não pode ser um padrão jurídico-político ou um critério último para julgar uma norma. Afirmar que uma norma é injusta, como vimos, não passa de uma expressão emocional de uma reação desfavorável frente a ela. A afirmação de uma norma é injusta não contém característica real alguma, nenhuma referência a algum critério, nenhuma argumentação. A ideologia da justiça não cabe, pois, num exame racional do valor das normas 9.

Não obstante, aqui nos interessa uma releitura do duplo grau de jurisdição sob um paradigma valorativo, ultrapassando os paradigmas de Kelsen e Ross. Trata-se da interpretação do duplo grau de jurisdição a luz da cláusula geral do devido processo legal valorativo e do direito fundamental à razoável duração do processo.

Com efeito, na concepção do paradigma pós-moderno, retorna-se a discussão dos valores como integrante do direito, afastando-se do panorama positivista, pois os valores integram a ordem jurídica. Miguel Reale é lapidar aludindo que:

Partindo da observação básica de que toda regra de Direito visa um valor, reconhece-se que a pluralidade dos valores é consubstancial à experiência jurídica. Utilidade, tranqüilidade, saúde, conforto, intimidade e infinitos outros valores fundam as normas jurídicas. Estas normas, por sua vez, pressupõem outros valores como o da liberdade (sem o qual não haveria possibilidade de se escolher entre valores, nem de se Page 423 atualizar uma valoração in concreto) ou os da igualdade, da ordem e da segurança, sem os quais o da liberdade redundaria em arbítrio 10.

É sob este paradigma valorativo que se constrói um devido processo legal, que passa a se chamar valorativo e irá influenciar em todo o ordenamento processual, aqui se destacando o duplo grau de jurisdição, com fulcro no direito ao processo em tempo razoável e sem dilações indevidas 11. Para tanto, vale a digressão dos postulados da segurança versus a justiça da decisão, ambos aplicados ao princípio do duplo grau de jurisdição.

Neste sentido, não se rejeita totalmente o valor segurança, aliás, como já salientado mantém-se o juiz ligado à lei e aos princípios constitucionais. Contudo, a segurança e a justiça formal não podem estar acima do ideal de justiça material. Esse talvez seja o desafio do jurista pós-moderno, qual seja interpretar a legislação de maneira que o ideal de justiça material esteja sempre permeando a aplicação do direito.

Assim, sob o paradigma pós-moderno, pós-positivista, importante mencionar que o valor justiça é relativo, não se tratando de retorno ao jusnaturalismo no qual o valor justiça é um ideal intangível e absoluto. Afirma o professor Ricardo Maurício:

O jusnaturalismo se afigura como uma corrente jusfilosófica de fundamentação do direito justo que remonta as representações primitivas da ordem legal de origem divina, passando pelos sofistas, estóicos, padres da igreja, escolásticos, racionalistas dos séculos XVII e XVIII, até a filosofia do direito natural do século XX 12.

Entretanto, o ideal aqui é uma justiça relativa, construída no caso concreto, tornando-se uma justiça que possa impingir uma releitura das leis quando os resultados destas não correspondam materialmente a justiça.

Numa visão eclética, pode-se falar da justiça da norma (ideia de direito - ideal positivista) e Justiça material (a situação da vida, a estrutura da realidade apontado o justo). Page 424

Em verdade, cada sociedade tem crenças, agentes e ações os quais em determinados momentos são aprovados sem reserva, como justo. Toda esta dialética entre norma e realidade irá servir para formar a justiça do ordenamento e a justiça da decisão.

O belga Chäim Peralman 13 faz inteligente distinção entre o politicamente justo e o filosoficamente justo. Nesse sentido, as leis, decretos e regulamentos definem o politicamente justo, fugindo do arbítrio, correspondendo aos desejos, crenças e valores da comunidade política. De outro turno, o filosoficamente justo é missão dos filósofos, defendendo os valores universais. Entretanto, cônscios são os filósofos que nunca chegarão à justiça perfeita.

E, nessa esteira, conclui Karl Larenz:

O Direito positivo que lhes corresponde realizaria o que ele denomina de politicamente justo. Bom, mas este só é «justo» quando e na medida em que realize, pelo menos de modo aproximado, o «filosoficamente justo» - correspondente ao estádio de conhecimento de cada época. O direito positivo representa o politicamente justo, mas este só é justo quando se realize de modo aproximado ao filosoficamente justo 14.

Essa dialética pelremaniana entre o politicamente justo e o filosoficamente justo é extremamente interessante, mostra a ideia de uma justiça sempre em construção e moldadas pelo homem e seus valores.

Assim, importante salientar que a justiça é o valor-fim e servirá como fundamento para toda a ordem jurídica, conclui Reale:

A nosso ver, a Justiça não se identifica com qualquer desses valores, nem mesmo com aqueles que mais dignificam o homem. Ela é antes a condição primeira de todos eles, a condição transcendental de sua possibilidade como atualização histórica. Ela vale para que todos os valores valham. Não é uma realidade acabada, nem um bem gratuito, mas é antes uma intenção radical vinculada às raízes do ser do homem, o único ente que, de Page 425 maneira originária é, enquanto dever ser. Ela é, pois, tentativa renovada e incessante de harmonia entre as experiências axiológicas e necessariamente plurais, distintas e complementares, sendo, ao mesmo tempo, a harmonia assim atingida 15.

É sob esta ótica de um devido processo legal valorativo e substancial, que possui como valor-fim, a justiça, que precisa ser modelado e remodelado o duplo grau de jurisdição. Mas como já salientado, nas palavras de Miguel Reale, a justiça é o fundamento, mas outros valores irão dele derivar, a saber: a...

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