Como repensar a família hoje?

AutorAndré Gonçalves Fernandes
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP)
Páginas171-243
171
COMO REPENSAR A
FAMÍLIA HOJE?
André Gonçalves Fernandes1
Eu não quero ter poder
Mas apenas liberdade
Pra dizer aos do poder
O que entendo ser verdade.
Provérbio português
1. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Fran-
cisco (USP). Mestre em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP.
Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de
direito titular de entrância final. Pesquisador do grupo Paideia, na linha de
ética, política e educação (FE/UNICAMP) e professor do CEU-IICS Escola
de Direito. Coordenador do IFE Campinas. Articulista da Escola Paulista
da Magistratura, da qual é também Juiz Instrutor, e do Correio Popular de
Campinas, com especialidade na área de Filosofia do Direito, Deontologia
Jurídica, Estado e Sociedade. Experiência profissional na área de Direito,
com especialidade em Direito Civil, Direito de Família, Direito Constitu-
cional, Deontologia Jurídica, Filosofia do Direito e Hermenêutica Jurídica.
Membro da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB/SP, da Escola do
Pensamento do IFE (www.ife.org.br), do Comitê Científico do CCFT Working
Group (Diálogos entre Cultura, Ciência, Filosofia e Teologia), da União dos
Juristas Católicos de São Paulo e da Comissão de Bioética da Arquidiocese
de Campinas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas.
Autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em
revistas especializadas.
172
O DIREITO E A FAMÍLIA
RESUMO
Os estudiosos das ciências humanas coincidem no mesmo
diagnóstico da sociedade contemporânea: um paciente que
passa por uma crise de sentido e que reflete, em parte, o mal
do homem moderno, a depressão. O discurso da modernidade
esclarecida representou um longo salto para a promoção da
ciência e da tecnologia. Contudo, foi pouco capaz de propor-
cionar um crescimento profundo do ser humano como pessoa.
Uma das razões desta crise estrutural está na polarização que
a modernidade criou entre indivíduo e Estado.
Certamente, a vida humana é marcada por uma tensão
dialética entre sua dimensão pessoal e sua dimensão social,
mas tensão não significa necessariamente alienação ou mesmo
oposição. A partir desse esquadro mau posicionado, a família,
como ente social de primeiríssima grandeza, passou por uma
série de processos de ressignificação desencadeados por um
denso arsenal intelectual filosófico, ideológico, legal, semânti-
co e científico, os quais abalaram suas bases ontológicas.
Como efeito disso, sua função personalizante foi decain-
do e, na realidade social, ganharam espaço uma série de mo-
delos familiares que cobram, a todo custo, do Direito de Famí-
lia, que já se transformou num pantanoso cipoal legislativo,
uma certa neutralidade axiológica legiferante, típica de um
ultrapassado positivismo normativista, sem que o mesmo Di-
reito possa, antes, investigar se aqueles modelos atendem a
certa estrutura objetiva da família, respeitam a antropologia
daí decorrente, viabilizam sua natural juridicidade constituti-
va e, ao mesmo tempo, favorecem a função personalizante e o
telos social do ente familiar.
INTRODUÇÃO
Torna-te o que és! Foi o que disse, certa vez, o poeta pagão
Píndaro acerca do homem. Do ponto de vista lógico, a afirmação
173
O DIREITO E A FAMÍLIA
de nosso poeta seria uma contradição, porque ninguém pode
vir a ser o que já é. Se já sou um ser humano, não posso vir a
sê-lo. Goergen (2005:61) elucida essa aparente contradição:
Na verdade, a percepção refinada do poeta traduz algo
mais profundo, algo que ultrapassa o mero esquematismo
lógico. Mesmo que sejamos seres humanos desde o nasci-
mento, podemos admitir, sem contradição, que aos nas-
cermos ainda não somos seres humanos em plenitude,
pois, não temos uma identidade. Somos apenas seres
abertos ao vir-a-ser humano. Este era o conselho do poeta:
construa sua identidade, ou seja, torna-te de fato o que já
és como possibilidade: ser humano. O que torna o ser
humano verdadeiramente humano, ou seja, em plenitude,
não é o fato de nascer filho de humanos, mas a construção
de sua identidade. Por isso, faz muito sentido o “torna-te
o que és” do poeta. Suas palavras escondem, ainda, um
outro sentido igualmente importante: Píndaro diz “torna-
-te”, e não “permita que façam de você” um ser humano.
Vale dizer que tornar-se um ser humano implica construir
a própria identidade que é tarefa de cada um. O ser hu-
mano é artífice, escultor de si mesmo. Tal processo ocorre
por conta do duplo movimento de socialização e indivi-
duação. Pela socialização o ser humano adapta-se ao meio
e torna-se um ser pertencente a uma cultura. Pela indivi-
duação ele constrói a sua própria individualidade, tornan-
do-se único, distinto de todos os demais no interior da
mesma cultura.
O fenômeno da família, no qual se insere o homem, de-
corre do fato de que o ser humano surge para a vida numa
situação de desamparo e, por isso, está necessariamente refe-
rido a outro. Existem seres vivos que são autônomos desde os
primeiros momentos de sua existência, o que pode ser obser-
vado fartamente na natureza animal. Ao contrário, um ser
humano recém-nascido demanda uma série de cuidados para
poder sobreviver e levar adiante seu próprio desenvolvimento
até a maturidade.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT