Reprodu ção Humana Assistida : do direito à ao Direito da

AutorAna Cláudia Silva Scalquette
Páginas47-89
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Capítulo 1 • a JurisprudênCia do tribunal EuropEu dos dirEitos do HomEm E o biodirEito
do TEDH, deve ser reconhecido aos Estados um espaço para a decisão relativa a
permitir (ou não) a interrupção de medidas de alimentação e hidratação artif‌iciais
com o mero intuito de retardar o processo natural da morte e, em caso af‌irmativo, à
decisão relativa aos requisitos e procedimentos que devem ser observados para que
se proceda àquela interrupção. Deve, por isso, reconhecer-se-lhe margem para def‌inir
a solução que entendam que mais adequadamente concilia a necessidade de prote-
ção do direito à vida (art. 2º) com a necessidade de proteção do direito à autonomia
pessoal e do direito ao respeito pela vida privada (art. 8º).
Acresce que um elemento essencial na decisão que seja tomada quanto à solução
relativa àquela interrupção é a necessária consideração pela vontade que seja ou tenha
sido manifestada pela pessoa relativamente à qual as medidas de suporte artif‌icial de
vida venham a ser interrompidas.172 Aliás, nesse sentido, existem parâmetros incluí-
dos no Guia sobre o processo de decisão relativo a tratamentos médicos em situação
de f‌im de vida.173 Na verdade, de acordo com este guia, mesmo que outras pessoas
sejam envolvidas no processo de tomada de decisão, deve af‌irmar-se sempre a cen-
tralidade da vontade do próprio paciente. Para esse efeito, os Estados devem, aliás,
prever regimes especiais para os casos em que o doente não possa (mais) participar
no processo de tomada de decisões, nomeadamente através da consagração regulação
da possibilidade de expressão formal e antecipada de diretivas de vontade ou de con-
cessão de poderes a outra pessoa para a tomada de decisões no futuro (denominado
“mandato para proteção futura”). Acresce que devem tomar-se em consideração as
manifestações de vontade que tenham ocorrido no passado (por exemplo, no caso
de o doente ter expressado a sua vontade oralmente a um membro da família ou a
um amigo próximo ou um cuidador).
Uma decisão emblemática sobre a problemática em referência foi a adotada no
caso Lambert e outros c. França.174 Aí estava em causa a decisão de interrupção da
alimentação e hidratação artif‌iciais de Vincent Lambert, um homem de 32 anos que,
na sequência de um acidente de viação, em setembro de 2008, sofreu lesões cerebrais
graves e irreversíveis, tendo f‌icado tetraplégico e no estado vegetativo permanente de
total dependência.175 Na sequência de queixa apresentada pelos familiares de Vincent
terapêutica”). Em ordem à proteção do direito à vida, poderão recair sobre o Estado, no primeiro caso,
obrigações negativas e no segundo caso, obrigações positivas. Em texto falaremos das segundas.
172. Como se sublinha na decisão Lambert c. França (n. 46043/14), [GC] de 05.06.2015, que referiremos infra
(§ 63).
173. Esse guia foi elaborado, em 2015, pela Comissão de Bioética do CE, com o objetivo de facilitar a aplicação
dos princípios previstos na Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, relativamente aos
direitos dos doentes. Encontra-se disponível, em várias línguas, no sítio do CE e a versão portuguesa no
endereço de internet [https://edoc.coe.int/en/bioethics/6531-guia-sobre-o-processo-de-decisao-relativo-a
-tratamentos-medicos-em-situacoes-de-f‌im-de-vida.html].
174. Lambert contra França (n. 46043/14), [GC] de 05.06.2015.
175. Cinco anos depois do acidente, em setembro de 2013, o médico que acompanhava Vincent, ao abrigo da
Lei Leonetti de 2005, dá início ao procedimento de consulta aí previsto, no sentido de se interromper o
tratamento inútil que tinha como único objetivo prolongar artif‌icialmente a sua vida. Como Vincent não
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que se opunham à interrupção do suporte artif‌icial de vida baseada fundamental-
mente na violação do direito à vida protegido pelo art. 2º, o TEDH foi chamado a
intervir.176 Considerando que o caso levantava uma “uma questão grave quanto à
interpretação da Convenção”, nos termos do art. 30 da CEDH a secção (Chamber ou
Chambre) do Tribunal que ia apreciar o caso, decidiu devolver a decisão do litígio
ao Tribunal Pleno (Grand Chamber ou Grande Chambre).177 Este Tribunal chamou a
atenção precisamente para “uma certa margem de apreciação” que deve ser reconhe-
cida aos Estados when addressing complex scientif‌ic, legal and ethical issues concerning
in particular the beginning or the end of life, and in the absence of consensus among
the member States (§ 144). Na verdade, o Tribunal constata que no consensus exists
among the Council of Europe member States in favour of permitting the withdrawal of
artif‌icial life-sustaining treatment, although the majority of States appear to allow it
147). Acresce que perante a diversidade de regimes aplicáveis nos ordenamentos em
que a interrupção é permitida, apenas um ponto parece consensual the paramount
importance of the patient’s wishes in the decision-making process, however those wishes
are expressed (idem). Conclui, por isso, que
in this sphere concerning the end of life, as in that concerning the beginning of life, States must
be afforded a margin of appreciation, not just as to whether or not to permit the withdrawal of
articial life-sustaining treatment and the detailed arrangements governing such withdrawal, but
also as regards the means of striking a balance between the protection of patients’ right to life and
the protection of their right to respect for their private life and their personal autonomy (§ 148).
Como a margem de apreciação não é ilimitada, ultrapassada essa margem, o
TEDH pode apreciar se as soluções adotadas nos ordenamentos jurídicos dos Estados
consubstanciam uma violação das obrigações que sobre eles recaem nos termos do
havia emitido diretivas antecipadas de vontade, nem havia indicado um procurador para os cuidados de
saúde (personne de conf‌iance na legislação francesa), apesar de se ter provado que se havia manifestado várias
vezes contra a possibilidade de lhe prolongarem artif‌icialmente a vida no caso de f‌icar num estado vegetativo
permanente, a palavra foi dada à família (a mulher, os pais e 8 irmãos de Vincent) que foi chamada a pro-
nunciar-se sobre o assunto, na sequência da consulta de 6 outros médicos e de reunião com toda a equipa
médica que acompanhava o paciente. A mulher e 6 irmãos pronunciaram-se no sentido da interrupção do
tratamento, seguindo, aliás, o entendimento de 5 dos 6 médicos consultados. Diversamente, os pais, uma
irmã e um meio-irmão de Vincent opunham-se a tal decisão. Em 11 de janeiro de 2014, considerando as
posições adotadas, o médico decide interromper a alimentação e a hidratação. O Conseil d’État foi chamado a
apreciar o caso, no âmbito de um procedimento de urgência. Atendendo à delicadeza da matéria, o Conselho
requereu um relatório exaustivo e atualizado do estado de saúde do paciente a 3 conceituados especialistas
em neurociência e solicitou a várias entidades que se pronunciassem (nomeadamente à Académie nationale
de médecine, ao Comité consultatif national d’éthique e ao Conseil national de l’ordre des médecins), solicitando
a Jean Leonetti parlamentar, cujo relatório esteve na base da lei suprarreferida, esclarecimentos sobre certos
conceitos (por exemplo, os de obstination déraisonnable e de maintien artif‌iciel de la vie). O Paciente foi
examinado 9 vezes e todos os envolvidos foram ouvidos. Com base no relatório e nos pareceres, o Conselho
de Estado Francês decide, em 24.06.2014, pronunciando-se no sentido da legalidade da decisão do médico
que acompanhava o paciente.
176. Nos termos do art. 39 das regras de funcionamento do Tribunal, como medida cautelar (Interim measures),
o TEDH decidiu-se pela suspensão da execução da decisão do Conseil d`État enquanto não fosse emitido a
sua decisão no caso em apreciação.
177. Em observância do disposto no art. 72 das regras de funcionamento do TEDH.
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Capítulo 1 • a JurisprudênCia do tribunal EuropEu dos dirEitos do HomEm E o biodirEito
art. 2º da CEDH. Ora na apreciação do caso Lambert e outros c. França, o Tribunal
entendeu, por maioria (12 votos contra 5) que não existiu tal violação (§ 181),178
considerando que as regras legais contidas na Lei Leonetti atendendo à forma como
foram in casu interpretadas pelo Conseil d`État ofereciam uma proteção suf‌iciente
do direito à vida, em virtude da clareza das previsões normativas e da precisão de
procedimentos (§§ 150 a 160). No que respeitava ao fato de o ordenamento jurídico
francês não contemplar uma solução para a resolução dos diferendos entre membros
da família (nomeadamente o recurso à mediação), nem uma hierarquização do relevo
a atribuir ao parecer dos vários membros da família, o TEDH entendeu que tal cabia
na margem de apreciação do Estado Francês (§ 167). Ademais, o processo de decisão
em causa (§§ 161 a 168) havia sido “longo e meticuloso”, tendo excedido até as exi-
gências consagradas na lei (§ 168). Finalmente, no que respeita aos procedimentos
judiciais disponíveis, foi entendido que nada havia a censurar, considerando o rigor
que os caracterizava e a abrangência de perspetivas que o seu âmbito podiam ser
expressas e atendidas (§§ 169 a 180).179
No seguimento dessa decisão e reiterando a sua jurisprudência, considere-se
a esse propósito a decisão do TEDH de 27 de junho de 2017, no caso, Gard c. Reino
Unido,180
em que se se colocava não só a questão da continuidade da implementação
de medidas de suporte de vida, mas também a da possibilidade de implementação
de tratamentos experimentais. Ademais a situação apresentava a especif‌icidade de
se reportar a um menor. Nessa situação, uma criança (Charles Gard) apresentava
uma doença genética rara e fatal. Em fevereiro de 2017, o hospital em que o mesmo
estava a ser tratado dirigiu-se a tribunal para que o mesmo se pronunciasse sobre
a licitude da retirada da ventilação artif‌icial da criança e da prestação de cuidados
paliativos. Por seu lado, os pais requereram a Tribunal que julgasse se a submissão do
seu f‌ilho a tratamentos experimentais disponíveis nos Estados Unidos correspondia
à satisfação dos seus melhores interesses. O Tribunal inglês acolheu o entendimento
do Hospital. Os pais inconformados apresentam queixa junto do TEDH, fundando-a
no fato de a decisão do Tribunal importar a violação do direito à vida do f‌ilho previsto
no art. 2º por conduzir à interrupção da assistência ao f‌ilho e a violação do direito à
vida familiar dos pais consagrado no art. 8º, n. 1, por consubstanciar uma ingerência
desproporcionada e injusta nos seus direitos parentais.
178. Sobre essa decisão, veja-se Hurpy, Hélène. La protection du droit au refus de l’acharnement thérapeutique par
le juge des référés dans le cadre de l’affaire «Vincent Lambert», in La Revue des droits de l’homme [En ligne],
Actualités Droits-Libertés, colocado em linha no dia 5 de setembro de 2014, consultado no dia 18 de outubro
de 2017. URL: [http://revdh.revues.org/868 ; DOI : 10.4000/revdh.868].
179. Vincent Lambert continua, hoje, em estado vegetativo permanente, sendo que em setembro de 2017, um
membro da família favorável à interrupção dos cuidados médicos solicitou um novo procedimento médico
colegial sobre a matéria.
180. Gard e outros c. Reino Unido (n. 39793/17), de 27.06.2017. Sobre esta decisão vide Tessier, Vincent. Fin de
vie : Une nouvelle décision de la Cour européenne des droits de l’Homme. Droit à la vie et droit au respect de la vie
privée (Art. 2 et 8 CEDH), in La Revue des droits de l’homme [En ligne], Actualités Droits-Libertés, mis en
ligne le 03 octobre 2017, consulté le 31 octobre 2017. URL: [http://revdh.revues.org/3288 ; DOI : 10.4000/
revdh.3288].
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