Reserva em concursos públicos: ação afirmativa visando a igualdade de oportunidades para negros, pretos, pardos

AutorMaria Aparecida Gugel
CargoSubprocuradora-Geral do Trabalho, Ministério Público do Trabalho
Páginas277-296

Page 277

Introdução

A partir de 19951, foram criados importantes fóruns de discussões para inserção do trabalhador negro no mundo do trabalho, compostos pelo movimento negro e de mulheres negras, quase sempre em parceria com o governo federal e o Ministério Público do Trabalho. Os primeiros fóruns de discussões foram constituídos no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e visavam a encontrar formas para a implementação da Convenção n. 111 com mecanismos eficientes de acesso e permanência do trabalhador negro no mundo do trabalho.

As conclusões dos grupos de trabalho resultaram na criação, em 1996, do Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e

Page 278

na Ocupação (GTDEO) no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, gerando no ano seguinte o Programa Brasil Gênero e Raça com a institucionalização de núcleos de conscientização para a existência real de discriminação no trabalho e fiscalização preventiva e informativa.

Em 1999, o Ministério Público do Trabalho assinou protocolo de cooperação com a Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e passou a receber denúncias de discriminação no trabalho de diferentes fontes. Ao mesmo tempo, criou mecanismos internos de formação de procuradores para detectar e atuar qualitativamente contra o racismo institucional nas empresas, quase sempre traduzido pela ausência do trabalhador negro em suas áreas produtiva, executiva e de alta complexidade. No ano seguinte, consolidou-se a Coordigualdade, coordenadoria com a atribuição principal de implementar a efetiva igualdade de oportunidades para trabalhadores nos ambientes de trabalho.

Em outubro de 2001 (Decreto n. 3.952), foi instituído o Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), composto paritariamente por governo e sociedade civil, com atribuições específicas de formação de políticas públicas voltadas para todos os direitos humanos da pessoa negra, indígenas e homossexuais. O CNCD foi também o articulador das conferências preparatórias para a Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul ocorrida em setembro de 2001. Os resultados desse importante fórum global com a constatação da real e indiscutível existência do racismo, assim como a necessidade de sua eliminação, formaram a Declaração e o Plano de Ação2 de Durban. Ambos serviram de base para o Plano Nacional de Direitos Humanos II (Decreto n. 4.229/2002).

Em maio de 2002 (Decreto n. 4.228), instituiu-se no âmbito da administração pública federal o Programa Nacional de Ações Afirmativas com a atribuição de observar e garantir metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores (DAS). Também em 2002, de forma inédita, o Instituto Rio Branco instituiu o primeiro programa de ação afirmativa, concedendo bolsas de estudo para candidatos afrobrasileiros interessados em participar das seleções promovidas pelo órgão.

Page 279

Foi nesse contexto que ocorreu a proposta do Estatuto da Igualdade Racial, em 2003, por meio do Projeto de Lei do Senado n. 213 do Senador Paulo Paim. Sete anos de discussões, emendas e substitutivos descon-figuram as ousadas propostas iniciais. Em 20 de julho, é editada a Lei n. 12.288 (Estatuto da Igualdade Racial). Concebido com 59 artigos que repetem os direitos fundamentais, definem conceitos de discriminação, igualdade de oportunidades, ação afirmativa e outros.

São conhecidos os embates para a sua edificação, sobretudo porque de um lado esteve (e ainda está!) o movimento negro consistente e unido em torno de uma norma com caráter de real direito à igualdade, tornando definitivamente visível a pessoa negra. Do outro lado da discussão para a consolidação do Estatuto, esteve (e persiste em estar!) o velho e conhecido espírito conservador "sólido e incontrastável, em sua visão imobilista do mundo" (COMPARATO, 1995) que simplesmente negava (e continua a negar!) a existência do racismo no Brasil, reduzindo-a ao estado de pobreza da população negra.

É contra essa última visão reducionista, construída de forma viciada e retrógada, que deve ser aplicado o inteiro conteúdo do Estatuto da Igualdade Racial, aproveitado em sua máxima efetividade. Afinal, "o negro é pobre porque é negro, ou ele é negro porque é pobre?" (questionamento que sempre faz o prof. Ivair Augusto dos Santos). Daí por que é urgente desfazer, desconstruir, eliminar a desigualdade racial brasileira, inclusive por meio de leis que visem a alavancar o processo de igualdade real.

Ainda que se argumente que falta à Lei n. 12.288/2010 a natureza de uma norma jurídica plenamente eficaz, com elementos essenciais de efetividade para segundo o entendimento popular "pegar", ou que nela não conste o almejado caráter vinculante de seus comandos e, a seguir a visão kelseniana, as sanções pelo descumprimento, ou, ainda, que se limita em capítulo sobre financiamento das iniciativas de promoção da igualdade racial a remeter os programas e ações ao orçamento anual da União, nos próximos cinco anos, é dos gestores públicos a responsabilidade de articulação permanente de ações que traduzam e efetivem a igualdade racial por meio do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), como consta dos arts. 47-48. Nesse ponto, é fundamental a persistência e pressão do movimento negro organizado exigindo políticas públicas de combate à marginalização, implementação de ações afirmativas pelos governos estaduais, municipais, distrital e, sempre garantidas nos respectivos orçamentos de maneira a viabilizar a implementação (art. 48,I a V).

É no Capítulo V, da Lei n. 12.288, dedicado ao trabalho e especificamente à propriedade da ação afirmativa de reserva de cargos na administração pública que se centram os argumentos desse estudo.

Page 280

1. Do trabalho

O Capítulo V, da Lei n. 12.288, dedicado ao trabalho está assim impresso:

Art. 38. A implementação de políticas voltadas para a inclusão da população negra no mercado de trabalho será de responsabilidade do poder público, observando-se:

1 — o instituído neste Estatuto;

II — os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965;

III — os compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar a Convenção n. 111, de 1958 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata da discriminação no emprego e na profissão;

IV — os demais compromissos formalmente assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional.

Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.

§ 1e A igualdade de oportunidades será lograda mediante a adoção de políticas e programas de formação profissional, de emprego e de geração de renda voltados para a população negra.

§ 2e As ações visando a promover a igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos.

§ 3e O poder público estimulará, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado.

§ 4e As ações de que trata o caput deste artigo assegurarão o princípio da proporcionalidade de gênero entre os beneficiários.

Page 281

§ 5e Será assegurado o acesso ao crédito para a pequena produção, nos meios rural e urbano, com ações afirmativas para mulheres negras.

§ 6e O poder público promoverá campanhas de sensibilização contra a marginalização da mulher negra no trabalho artístico e cultural.

§ 7- O poder público promoverá ações com o objetivo de elevar a escolaridade e a qualificação profissional nos setores da economia que contem com alto índice de ocupação por trabalhadores negros de baixa escolarização.

Art. 40. O Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat) formulará políticas, programas e projetos voltados para a inclusão da população negra no mercado de trabalho e orientará a destinação de recursos para seu financiamento.

Art. 41. As ações de emprego e renda, promovidas por meio de financiamento para constituição e ampliação de pequenas e médias empresas e de programas de geração de renda, contemplarão o estímulo à promoção de empresários negros.

Parágrafo único. O poder público estimulará as atividades voltadas ao turismo étnico com enfoque nos locais, monumentos e cidades que retratem a cultura, os usos e os costumes da população negra.

Art. 42. O Poder Executivo federal poderá implementar critérios para provimento de cargos em comissão e funções de confiança destinados a ampliar a participação de negros, buscando reproduzir a estrutura da distribuição étnica nacional ou, quando for o caso, estadual, observados os dados demográficos oficiais.

Há uma realidade invisível, negada por todos que insistem em afirmar a inexistência de racismo no Brasil, principalmente no âmbito das relações de trabalho: quanto maior é o nível hierárquico na empresa e a complexidade do cargo, menor é a probabilidade de um trabalhador negro estar no quadro de direção. Trata-se do racismo institucional existente nas empresas privadas e na administração públicas brasileira. Em 2010, o Instituto Ethos editou o perfil das 500...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT