Resistance and adjustment: the worker in the 1930s/Da resistencia ao ajuste: o trabalhador na decada de 1930.

AutorCabral, Rafael Lamera Giesta

Introducao

Nos ultimos anos, o governo brasileiro anunciou uma serie de medidas que atingiriam diretamente os interesses de inumeros contribuintes que buscassem beneficios previdenciarios: pensao por morte, auxilio-doenca, abono salarial, seguro-desemprego e seguro-defeso foram as primeiras alteracoes que comporiam o chamado "pacote de ajuste fiscal".

Desde entao, longas analises foram produzidas, ora questionando as acoes, ora defendo-as. Muitos brasileiros se reorganizaram, ajustaram e buscaram alternativas frente as novas mudancas. Medidas como essas retratam um presente que pode ser compreendido tanto pela perspectiva do futuro quanto pela do passado. O retorno ao passado pode ser bem sugestivo para as questoes do presente. A legislacao trabalhista e previdenciaria impacta diretamente sobre a vida de trabalhadores e empregadores.

O problema enfrentado nesses ultimos anos, guardada suas devidas proporcoes, e muito semelhante a outras experiencias ja retratadas pelo Brasil, como exemplo, as que abalizaram a transicao da 1a Republica para o periodo chamado Era Vargas. Esse periodo marcou mudancas profundas no mundo do trabalho. A alteracao de um modelo agrario-exportador para um industrial, por exemplo, trouxe a tona inovacoes tecnicas e modernizacao que se projetaram por longo tempo.

Essas transformacoes geraram consequencias importantes para a repactuacao de estrategias e interesses que se formalizaram desde os movimentos reformistas conduzidos por Getulio Vargas ate a Constituicao de 1934. As rupturas proprias desse periodo, associa-se uma serie de modificacoes ocorridas nas relacoes desenvolvidas pela politica e pelo direito. No entanto, ainda sao comuns afirmacoes genericas sobre os eventos politicos que se sucederam desde a Revolucao de 1930, incapazes de compreender as iniciativas autonomas que se formaram progressivamente por racionalidades proprias e nao necessariamente ancoradas nos interesses do governo provisorio. Iniciativas estas que influenciaram a forma como as legislacoes sociais foram recepcionadas por empregadores e empregados, colocando em evidencia as alternativas, as resistencias e os avancos que a condicao de cidadania reinaugurava com a Constituicao de 1934.

A regulacao do trabalho, logo apos a criacao do Ministerio do Trabalho, Industria e Comercio (MTIC), em 1930, pode ser aqui mencionada, principalmente, ao se verificar que os conflitos relacionados a ideia de novos direitos misturavam-se em uma realidade concreta que nao permitia a construcao de um modelo claro ou inequivoco. De tal modo que as organizacoes dos trabalhadores, sobretudo apos a reforma sindical de 1931, ainda podiam ser associadas a modelos antagonicos: i) corporativista e nao combativo, ou seja, submisso aos patroes e aliados do MTIC; e ii) independente ou de oposicao, vinculado aos movimentos comunistas, anarquistas ou socialistas. Fato e que, durante muito tempo, esses modelos tiveram um peso significativo no debate historiografico. Mas quais eram os impulsos do direito para a regularizacao das relacoes de trabalho?

Este trabalho analisa, a partir de um caso concreto ocorrido em 1934, como a tensao decorrente dos novos direitos do trabalho teve impacto nas estruturas da relacao de trabalho e, concomitantemente, registra a reacao e atuacao dos trabalhadores diante das novas regras constitucionais, sob a perspectiva da historia do direito. As transformacoes do mundo do trabalho pela via judicial ou administrativa nao ocorreram pacificamente. Identificar esses movimentos e importante para que seja possivel produzir narrativas que reconstruam episodios relevantes da historia dos direitos sociais no Brasil.

De certo modo, esse objetivo ganhou corpo no processo de desenvolvimento da pesquisa, a partir do realce que as contradicoes e os conflitos observados naquela situacao apresentaram. Na composicao entre capital e trabalho, verificou-se o desdobramento do conflito trabalhista em outros niveis de equilibrio, permitindo a assuncao de novos "lugares de direito" e, com isso, de situacoes imprevisiveis.

Selecionado em um fundo de arquivo do Conselho Nacional do Trabalho (CNT), o objeto de analise consiste da reclamacao trabalhista no 9.582/1934, promovida por Domingos Mantilha e outros seis trabalhadores, representados pelo Sindicato dos Mineiros de Arroio dos Ratos (1) (SMAR), contra a Companhia Estrada de Ferro e Minas de Sao Jeronimo (CEFMSJ), em agosto de 1934. O caso relata uma situacao nao incomum nas minas de carvao do pais: o conflito entre empregados e patroes para o cumprimento da legislacao social produzida nos ultimos anos da Primeira Republica e inicio da decada de 1930. A principal legislacao para ferroviarios e mineiros (2) foi demarcada pela introducao da Lei Eloi Chaves, de 1923 (e suas alteracoes, em 1926, 1931 e 1932). Ao estabelecer a obrigatoriedade de Caixas de Aposentadoria e Pensoes (CAPs), a legislacao incluiu tambem a garantia de estabilidade decenal aos empregados que comprovassem tempo de servico minimo de dez anos dedicados a uma mesma empresa. A estabilidade, desse modo, oferecia garantia de manutencao do vinculo empregaticio do trabalhador, tornando a possibilidade de demissao mais restrita aos casos de falta grave, apurados em inquerito administrativo.

A reclamacao trabalhista relatava a demissao sem justa causa de trabalhadores estaveis e nao estaveis, com pedido de reintegracao aos seus oficios. A primeira manifestacao da CEFMSJ informava que a substituicao dos trabalhadores ocorrera por abandono de emprego, configurada com a expulsao dos mineiros pela policia local, apos denuncia de estarem tramando uma greve geral nas minas em marco de 1934--sendo considerados, entao, indesejaveis.

Os fatos que legitimaram as demissoes dos empregados tem origem em um possivel movimento de greve. Desde o inicio da Assembleia Nacional Constituinte, em novembro de 1933, o direito a greve estava em disputa na arena politica. O conceito "greve dos trabalhadores" foi utilizado sob muitas perspectivas.

A forma como o processo se desenvolveu, atrelado ainda a configuracao das defesas apresentadas, refletia, na verdade, o uso de uma racionalidade seletiva e limitada, cuidadosamente construida para nao expor as realidades mais ameacadoras do mundo do trabalho em conflito com a lei, mas de grande referencia para a historia do direito constitucional brasileiro. Os acontecimentos locais (em que foram presenciados os conflitos entre policia, mineiros e companhia)--por mais que representassem uma pratica, possivelmente, reiterada da companhia empregadora--estavam interligados a fatos economicos e politicos que fugiram do controle da companhia. (3) Nesse contexto, surgem problemas interessantes para a reflexao acerca da historia do direito em momentos de aplicacao do direito.

O que emergia desses conflitos nao era apenas uma resistencia ou crise no sistema punitivo local, mas a presenca de alternativas, de possibilidades historicas que, ao serem ritualizadas mediante o processo, permitiam o registro dos limites e avancos de uma comunidade de trabalhadores que passava a ser mediada pelo direito de maneira inedita.

O processo em analise teve curso ha mais de 80 anos. O passado ja nao pode ser acessado diretamente. O uso da metodologia da micro-historia foi importante para o desenvolvimento da pesquisa. Ao reduzir o nivel na escala de observacao, com o tratamento intensivo das fontes, dentro da perspectiva do paradigma indiciario (GINZBURG, 2007), possibilitou trazer a tona elementos constantes e regras individuais que demonstraram uma circularidade tematica que colocava em evidencia as tensoes entre exercicio, reconhecimento e protecao de direitos no mundo do trabalho. O destaque desta pesquisa sera o contexto da Companhia Estrada de Ferro e Minas de Sao Jeronimo e como seu sistema de vigilancia e controle sobre a mao de obra resistia aos novos direitos sociais em vigor.

A margem do caso Domingos Mantilha e outros, o conjunto de vestigios, fragmentos de verdade, representacoes do real, provas documentais e testemunhos levantados pela pesquisa produziu um impacto significativo sobre algumas premissas em que se assentava a investigacao. A reconstituicao do vivido, a comecar pela reducao na escala de observacao proporcionada pelo universo restrito do processo, permitiu tracar um programa de pesquisa que viabilizou a revogacao de algumas certezas. E, a partir das estrategias sindicais, de trabalhadores, empregadores e dos tribunais (ou orgaos administrativos, como o CNT), foi possivel demonstrar o longo processo de elaboracao e redefinicao de espacos institucionais que direito e politica reproduziram em um determinado momento constitucional. Desse modo, o processo em apreciacao inseriu-se em um universo de novas experiencias, em que as inovacoes da politica social, a redefinicao de espacos juridicos e a reorientacao do sistema produtivo e economico assentavam-se em bases diversas e ineditas na configuracao nacional promovida desde a Revolucao de 1930. (4)

O trabalho esta subdividido em duas secoes. Na primeira, ha uma transcricao do caso a partir das fontes primarias consultadas. Na segunda, busca-se analisar o caso a partir das reacoes e ajustes promovidos pelos empregados e empregadores frente as novas regras do direito do trabalho que passavam a ser constitucionalizadas com a Constituicao Federal de 1934.

  1. Os mineiros e a reclamacao trabalhista no Conselho Nacional do Trabalho

    Nos primeiros dias do mes de setembro de 1934, chegava ao Conselho Nacional do Trabalho (5) (CNT) uma reclamacao trabalhista da 11a Inspetoria do CNT em Porto Alegre/RS. Tratava-se do processo dos mineiros Domingos Mantilha, Liberalino Machado de Lima (ou Januario Machado de Lima), Raphael Mezza, Antonio Nunes das Pedras, Adalberto Azambuja dos Santos, Joao Keenan e Thomaz Goncalves da Silva (6) contra a Companhia Estrada de Ferro e Minas de Sao Jeronimo (CEFMSJ).

    O caso se originou em uma das instalacoes da CEFMSJ, no distrito de...

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