Resolução 2013/2013 do CFM: limitação inconstitucional à liberdade de planejamento familiar

AutorCarlos José Cordeiro
Páginas207-222

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Ver Nota1

No ano de 2013, o Conselho Federal de Medicina (CFM), autarquia federal regida pela Lei nº 3.268/872, expediu a Resolução nº 2013, que tem por objetivo “adotar as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, anexas à presente resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos” (art. 1º). Referido texto normativo revogou a Resolução nº 1.957/10, que, até então, regia a temática da reprodução assistida, a qual, segundo manifestado pelo CFM na exposição de motivos da nova Resolução, “mostrou-se satisfatória e eicaz, balizando o controle dos processos de fertilização assistida. No entanto, as mudanças sociais e a constante e rápida evolução cientíica nessa área tornaram necessária a sua revisão”.

A Resolução 2013/2013 é responsável por disciplinar mudanças no trato da reprodução assistida no país, as quais são vistas pelos proissionais médicos como verdadeiro avanço na matéria, haja vista lhes atribuir maior clareza e segurança para a atuação. De fato, dentre as alterações promovidas, está a expressa menção à possibilidade de casais homoafetivos e de pessoas solteiras se submeterem à

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inseminação artiicial; a permissão de descarte de embriões congelados após o transcurso de 5 (cinco) anos; e a possibilidade de parentes de até quarto grau serem doadoras do útero para a gestação.

Contudo, uma inovação trazida pela Resolução nº 2013/2013 tem sido alvo de críticas no meio jurídico, devido à sua induvidosa inconstitucionalidade, por ser ofensiva ao direito fundamental ao planejamento familiar, qual seja, a previsão de idade máxima para que a mulher se submeta ao procedimento de reprodução assistida, constante no item I.2 de seu anexo, in verbis: “As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente, e a idade máxima das candidatas à gestação de RA é de 50 anos”.

A princípio, o fundamento para impedir que mulheres com idade superior a 50 (cinquenta) anos se submetam à reprodução assistida é de caráter médico, pois, de acordo com a exposição de motivos da Resolução, dentre os fatores motivadores de sua edição estavam a “falta de limite de idade para o uso das técnicas e o excessivo número de mulheres com baixa probabilidade de gravidez devido à idade, que necessitam a recepção de óvulos doados”. Vale dizer, para a deinição do limite etário, foi considerado, de modo genérico, que a gravidez após os 50 (cinquenta) anos traz riscos para a vida da criança e da gestante ? hipertensão na gravidez, diabetes, maior ocorrência de partos prematuros etc. ?, pois esta não estaria mais em sua fase reprodutiva. Contudo, conforme restará demonstrado neste estudo, referida previsão normativa padece de inconstitucionalidade, pois impede o exercício dos direitos reprodutivos da pessoa humana e, por consequência, ofende a liberdade de planejamento familiar.

A família representa a unidade primária de associação dos indivíduos e, assim, a unidade fundamental da sociedade, na medida em que é entendida como a reunião de pessoas ligadas por vínculos sanguíneos e afetivos, responsável pelo desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, bem como pela construção de suas potencialidades em prol da convivência social. Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988, no caput de seu art. 226, prevê que a família é a base da sociedade e, por isso, tem especial proteção do Estado.

Em vista disso, cumpre destacar que a Carta Magna de 1988 foi responsável por promover importante transformação no conceito de família, a qual deixou de ser um organismo preordenado a ins externos, para se tornar “um núcleo de companheirismo a serviço das próprias pessoas que a constituem”.3De fato, não

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cabe ao Estado-legislador criar o fenômeno familiar, mas apenas tutelar as famílias que se formam naturalmente, de modo a proteger a dignidade de seus membros. Portanto, a família representa o ambiente em que cada pessoa busca a sua própria realização, por meio do relacionamento com outra ou outras pessoas, não se restringindo apenas ao casamento, estrutura familiar instituída pelo Estado.

Nesse passo, a Constituição Federal de 1988, ao adotar o princípio do pluralismo das entidades familiares, reconheceu, ao lado da família conjugal, a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º).4Ademais, estabeleceu plena igualdade entre homem e mulher no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (art. 226, § 5º), além de garantir iguais direitos e qualiicações aos ilhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, proibidas quaisquer designações discriminatórias (art. 227, § 6º).

Entrementes, para o presente estudo, a previsão constitucional que se destaca é a contida no art. 226, § 7º, a qual consagra o direito fundamental ao planejamento familiar, in verbis:

Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e cientíicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oiciais ou privadas.

De acordo com o texto constitucional, o planejamento familiar é um direito personalíssimo dos casais, responsável por lhes assegurar a liberdade para a organização da família, tanto no aspecto da contracepção e concepção de ilhos quanto na deinição do modo de vida, de trabalho, de formação moral, cultural

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e religiosa, de educação dos ilhos, dentre outras questões afetas à manutenção da entidade familiar.5Seu exercício deve ser orientado pelos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável, o que, segundo o então Ministro Ayres Britto, quando do julgamento da ADI 3.510/DF, atribui ao planejamento familiar a seguinte intelecção:

I – dispor sobre o tamanho de sua família e possibilidade de sustentá-la material-mente, tanto quanto de assisti-la física e amorosamente, é modalidade de decisão a ser tomada pelo casal. Mas decisão tão voluntária quanto responsavelmente tomada, tendo como primeiro e explícito suporte o princípio fundamental da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 5º);

II – princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, esse, que opera por modo binário ou dual. De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público subjetivo à “liberdade” (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade ou esfera de privacidade decisória. De outra banda, para contemplar os porvindouros componentes da unidade familiar, se por eles optar o casal, com planejadas condições de bem-estar e assistência físico-afetiva.6Nesse passo, constata-se que o direito ao planejamento familiar está diretamente interligado a vários outros direitos que asseguram o livre desenvolvimento da personalidade ? qualidade do ente considerado pessoa ?, destacando-se os direitos reprodutivos, o exercício da sexualidade, o direito ao próprio corpo, o direito à saúde etc., os quais, de forma conjunta, possibilitam a concretização do projeto parental, o qual também constitui interesse essencial de toda pessoa, vale dizer, é

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dotado de caráter personalíssimo.7Para que referidos direitos se tornem efetivos, deve ser assegurado o seu livre exercício, o que também traz a lume a necessidade de preservação da autonomia privada de cada pessoa e do casal.

Dessa forma, tem-se que o livre exercício do planejamento familiar constitui decorrência direta do princípio da autonomia privada, que diz respeito a um dos componentes primordiais da liberdade, representado pelo poder do indivíduo de auto-regulamentar seus próprios interesses, ou seja, “a capacidade do sujeito de direito de determinar seu próprio comportamento individual”8. Assim, o planejamento familiar corresponde ao espaço de autonomia delegado pelo ordenamento jurídico aos membros da entidade familiar, a im de que busquem a ideal conformação da família em prol do pleno desenvolvimento de suas personalidades.

A própria Constituição Federal de 1988, no art. 226, § 7º, dispõe ser vedada qualquer forma coercitiva de intervenção, por parte de instituições públicas ou privadas, na deinição do planejamento familiar pelo casal, sendo, contudo, atribuído ao Estado, o dever de propiciar os recursos educacionais e cientíicos para o exercício desse direito. Logo, cabe ao Estado a tutela das relações familiares, em que se insere o desenvolvimento de políticas públicas orientadas a viabilizar a plena, livre e consciente construção do projeto parental por todas as pessoas, o que abrange o acesso a métodos preventivos de regulação da fecundidade, a implementação de serviços educacionais relativos ao planejamento reprodutivo, a prevenção e o tratamento de doenças sexualmente transmissíveis, dentre outras medidas e ações.

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Em vista disso, a Lei nº 9.263/96, responsável por regular o § 7º, do art. 226, da Constituição Federal de 1988, após deinir o planejamento familiar como “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (art. 2º), traça as atividades básicas que devem ser fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no programa de atenção integral à saúde da mulher, do homem e do casal:

Art. 3º [...]. Parágrafo único – As instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde, em todos os seus níveis, na prestação das ações previstas no caput, obrigam-se a garantir, em toda a sua rede de serviços, no que respeita a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas, entre outras:

I – a assistência à concepção e contracepção;

II – o atendimento pré-natal;

III – a assistência ao parto, ao puerpério e ao...

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