A resolução alternativa de litígios na saúde: o sistema de mediação de conflitos da entidade reguladora da saúde
Autor | Eemília Ferreira - Liliana Matos Viana - Sofia Melo |
Cargo | Coordenadora de Unidade na ERS - Técnica Superior de Regulação na ERS - Técnica Superior de regulação na ERS |
Páginas | 139-159 |
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Os conflitos no setor da saúde vão, como se verá infra, muito além dos conflitos de consumo que se centram nas relações entre os utentes e os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde1. Os conflitos neste setor são de natureza complexa, dinâmica e emotiva. A área da saúde envolve conhecimentos técnicos de diferentes ramos da ciência, que apresentam um elevado grau de complexidade científica, envolvendo, paralelamente, as prestações de cuidados de saúde realizadas em cada uma das múltiplas divisões deste setor um elevado grau de tecnicidade. Acresce que o conhecimento sobre questões relacionadas com a saúde humana compreende, frequentemente, um elevado grau de incerteza e até mesmo de instabilidade.
Do lado do utente, as pessoas sujeitas a prestações de cuidados de saúde estão frequentemente num estado de fragilidade física, diminuição psicológica e, até mesmo, perante situações de final de vida. Trata-se, assim, de um contexto com uma significativa dimensão emocional, no qual as relações entre profissionais de saúde e os utentes revestem particularidades que passam pelo respeito do regime do consentimento informado, da confidencialidade, com expressão máxima no respeito pelo direito de autodeterminação pessoal do utente. O desequilíbrio de poderes e o acesso desigual à informação, que é muito técnica e especializada, revelam uma assimetria que é característica das relações intersubjetivas estabelecidas no setor da saúde.
Noutra perspetiva, nos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, as decisões relativas à gestão de recursos materiais e humanos têm normalmente sérias repercussões na proteção da saúde e, por vezes, na vida dos utentes. A realização de prestações de cuidados de saúde envolve, ainda, uma grande interdependência entre todos os profissionais da organização, sendo as relações entre os profissionais que trabalham nesta área suscetíveis de originar situações de conflito (Brito, 2014).
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Assim, no campo da saúde há uma grande diversidade de entidades de natureza complexa e com características muito particulares, desde estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde do serviço nacional de saúde (sns), do setor privado e do setor social, onde ocorrem uma multiplicidade de relações, tais como as relações entre os profissionais de saúde e os utentes, as relações laborais em geral, incluindo as prestações de serviços, as relações com os fornecedores de bens e serviços em regime de outsourcing, as relações com os fornecedores de medicamentos, as relações com os serviços de recolha e tratamento de águas e resíduos e, ainda, relações no âmbito de contratos de concessão, de parceria público-privada, de convenção ou outras relações contratuais afins.
Assim, em face da complexidade, do dinamismo e da emotividade que caracteriza o contexto das relações intersubjetivas estabelecidas no espaço da saúde, verificamos que os conflitos que nele emergem podem assumir, de um ponto de vista material, contornos muito diversos.
No que respeita ao âmbito subjetivo, deparamo-nos, igualmente, com uma multiplicidade de intervenientes, verificando-se conflitos entre estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde e utentes, incluindo os seus familiares2, conflitos entre os próprios trabalhadores (profissionais de saúde e/ou outros funcionários) de um estabelecimento prestador de cuidados de saúde, entre os estabelecimentos do sns, entre estes e estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde do setor privado e/ou social, entre estabelecimentos do setor privado e/ou social, ou mesmo entre um estabelecimento prestador de cuidados de saúde e empresas prestadoras de bens e serviços que operam no setor da saúde. Finalmente, verifica-se, ainda, a existência de conflitos entre as entidades financiadoras (v.g. As administrações regionais de saúde) e os estabelecimentos do sns, do setor privado ou do setor social, no âmbito de contratos de concessão, parcerias público-privadas, convenções.
Ora, a multiplicidade de conflitos neste domínio, quer de um ponto de vista material, quer subjetivo, justificam de per si a pertinência dos meios de resolução alternativa de litígios, designadamente a mediação ou conciliação de conflitos.
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Num contexto de forte conflitualidade, a morosidade e a onerosidade do acesso à justiça através dos meios tradicionais de resolução de conflitos (os tribunais) conduziram ao aparecimento e desenvolvimento de meios de resolução alternativa de litígios ou alternative dispute resolution (ADR), por influência do direito norteamericano.
Os procedimentos de resolução alternativa de litígios como, nomeadamente, a conciliação e, sobretudo, a mediação e a arbitragem têm vindo, assim, a conquistar um lugar cada vez mais relevante neste novo contexto de atuação face à conflitualidade com que nos temos vindo a deparar.
Em concreto, e fazendo referência especificamente à mediação, este meio de resolução alternativa de litígios é entendido como um método evoluído de resolução de litígios, célere e económico, ao qual ambas as partes recorrem de forma voluntária, responsabilizando-se pelo término ou permanência no mesmo (Cunha e leitão, 2012). A mediação é um método baseado na intervenção de um terceiro neutro - o mediador -, que tem por missão ajudar as partes a estabelecer ou restabelecer um diálogo, e eventualmente, por mérito próprio, atingir um acordo que satisfaça os interesses de ambos. A mediação possibilita a transformação da "cultura do conflito" em "cultura do diálogo", procurando fazer sobressair laços positivos entre os envolvidos na desavença, com o objetivo de amenizar a discórdia e facilitar a comunicação (andrade, 2007).
De acordo com Cunha e leitão (2012), a resolução de um conflito por vezes traduz-se, exclusivamente, na procura de um modo de o eliminar ou de o reduzir. Por sua vez, uma gestão construtiva de conflitos implica, para além de uma procura de soluções, a delimitação de estratégias que permitam alcançar e aproveitar os benefícios do conflito, sobretudo ao nível da aprendizagem e mudança de comportamentos dos envolvidos.
Considerando o exposto, a escolha da mediação como meio de resolução de litígios no setor da saúde introduz algumas vantagens
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de natureza geral, nomeadamente a informalidade, a rapidez na obtenção de uma solução, a voluntariedade, traduzida na supremacia da vontade das partes, a diminuição de custos com o processo (atenta a sua tendencial gratuitidade), a especialização da resolução do conflito através da sua condução por mediadores com conhecimentos técnicos em resolução alternativa de litígios e, eventualmente, por técnicos especializados na regulação do setor3.
Simultaneamente, promove, de forma mais específica para o setor, uma melhoria na gestão construtiva de conflitos em diversas vertentes:
(i) entre trabalhadores (profissionais de saúde e/ou outros funcionários) de um estabelecimento prestador de cuidados de saúde, sempre que surjam conflitos numa equipa de trabalho, conflitos com o superior hierárquico e conflitos entre diferentes serviços. Nestes casos, a utilização da mediação poderá auxiliar a que o trabalho, ultrapassadas as barreiras de comunicação motivadas pelo conflito, continue a ser realizado de maneira colaborativa, respeitosa, e possivelmente de forma mais eficiente;
(ii) no seio dos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, a opção pela mediação permite, por exemplo, tomar consciência sobre algumas das suas falhas de funcionamento, possibilita a identificação e resolução da questão central do conflito, evitando, assim, que a mesma ocorra no futuro (Hope, 2012), contribuindo para a melhoria do funcionamento das organizações de saúde;
(iii) a mediação pode também contribuir para o desenvolvimento de um ambiente mais amistoso nas relações entre profissionais de saúde, o utente e a sua família, como um espaço intermediário entre o utente e a instituição de saúde, e, ainda, entre o médico e a família do utente. De acordo com liebman e Hyman (2004), a mediação proporciona a troca de informação entre profissionais de saúde, pacientes e famílias, auxiliando até na transmissão de informação complexa sobre as incertezas dos tratamentos médicos. Trata-se de um meio importante para ultrapassar o problema da assimetria de informação que existe nesta área, como se referiu supra, caraterizado por uma informação muito técnica e especializada. Neste âmbito, importa dizer ainda, outra vantagem em resolver os conflitos recorrendo à mediação resulta do restabelecimento da confiança do utente no setor da saúde. A saúde
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é um direito fundamental, assim como uma necessidade de todos os cidadãos, pelo que, com o recurso à mediação, pode ser alcançada uma reparação a nível psicológico dos utentes, e assim tentar restabelecer e/ ou refazer a ideia de que poderão voltar a recorrer aos serviços de saúde sem que tal origine conflitos.
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